CARTA ENCÍCLICA REDEMPTORIS MATER

DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II SOBRE A BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA NA VIDA DA IGREJA QUE ESTÁ A CAMINHO

Veneráveis Irmãos, caríssimos Filhos e Filhas: saúde e Bênção Apostólica!

INTRODUÇÃO

1. A MÃE DO REDENTOR tem um lugar bem preciso no plano da salvação, porque, «ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido duma mulher, nascido sob a Lei, a fim de resgatar os que estavam sujeitos à Lei e para que nós recebêssemos a adopção de filhos. E porque vós sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: ¨Abbá! Pai!¨» (Gál 4, 4-6).

Com estas palavras do Apóstolo São Paulo, que são referidas pelo Concílio Vaticano II no início da sua exposição sobre a Bem-aventurada Virgem Maria, (1) desejo também eu começar a minha reflexão sobre o significado que Maria tem no mistério de Cristo e sobre a sua presença activa e exemplar na vida da Igreja. Trata-se, de facto, de palavras que celebram conjuntamente o amor do Pai, a missão do Filho, o dom do Espírito Santo, a mulher da qual nasceu o Redentor e a nossa filiação divina, no mistério da «plenitude dos tempos». (2)

Esta «plenitude» indica o momento, fixado desde toda a eternidade, em que o Pai enviou o seu Filho, «para que todo o que n`Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). Ela designa o momento abençoado em que «o Verbo, que estava junto de Deus, … se fez carne e habitou entre nós» (Jo 1, 1. 14), fazendo-se nosso irmão. Esta «plenitude» marca o momento em que o Espírito Santo que já tinha infundido a plenitude de graça em Maria de Nazaré, plasmou no seu seio virginal a natureza humana de Cristo. A mesma «plenitude» denota aquele momento, em que, pelo ingresso do eterno no tempo, do divino no humano, o próprio tempo foi redimido e, tendo sido preenchido pelo mistério de Cristo, se torna definitivamente «tempo de salvação». Ela assinala, ainda, o início arcano da caminhada da Igreja. Na Liturgia, de facto, a Igreja saúda Maria de Nazaré como seu início, (3) por isso mesmo que já vê projectar-se, no evento da Conceição imaculada, como que antecipada no seu membro mais nobre, a graça salvadora da Páscoa; e, sobretudo, porque no acontecimento da Incarnação se encontram indissoluvelmente ligados Cristo e Maria Santíssima: Aquele que é o seu Senhor e a sua Cabeça e Aquela que, ao pronunciar o primeiro «fiat» (faça-se) da Nova Aliança, prefigura a condição da mesma Igreja de esposa e de mãe.

2. Confortada pela presença de Cristo (cf. Mt 28, 20), a Igreja caminha no tempo, no sentido da consumação dos séculos e procede para o encontro com o Senhor que vem. Mas nesta caminhada – desejo realçá-lo desde já – a Igreja procede seguindo as pegadas do itinerário percorrido pela Virgem Maria, a qual «avançou na peregrinação da fé, mantendo fielmente a união com o seu Filho até à Cruz».(4)

Refiro estas palavras tão densas, evocando assim a Constituição Lumen Gentium, o documento que, no último capítulo, apresenta uma síntese vigorosa da fé e da doutrina da Igreja sobre o tema da Mãe de Cristo, venerada como Mãe amantíssima e como seu modelo na fé, na esperança e na caridade.

Poucos anos depois do Concílio, o meu grande Predecessor Paulo VI houve por bem voltar a falar da Virgem Santíssima, expondo primeiramente na Carta Encíclica Christi Matri e, em seguida, nas Exortações Apostólicas Signum Magnum e Marialis Cultus, (5) os fundamentos e os critérios daquela veneração singular que a Mãe de Cristo recebe na Igreja, assim como as formas de devoção mariana – litúrgicas, populares e privadas – em correspondência com o espírito da fé.

3. A circunstância que agora me impele também a mim a retomar este assunto é a perspectiva do Ano Dois Mil, que já está próximo, no qual o Jubileu bimilenário do nascimento de Jesus Cristo, nos leva a volver o olhar simultaneamente para a sua Mãe. Nestes anos mais recentes, foram aparecendo diversos alvitres que apontavam a oportunidade de fazer anteceder a comemoração bimilenária de um outro Jubileu análogo, dedicado à celebração do nascimento de Maria Santíssima.

Na realidade, se não é possível estabelecer um momento cronológico preciso para aí fixar o nascimento de Maria, tem sido constante da parte da Igreja a consciência de que Maria apareceu antes de Cristo no horizonte da história da salvação.(6) É um facto que, ao aproximar-se definitivamente a «plenitude dos tempos», isto é, o advento salvífico do Emanuel, Aquela que desde a eternidade estava destinada a ser sua Mãe já existia sobre a terra. Esta sua «precedência», em relação à vinda de Cristo, tem anualmente os seus reflexos na liturgia do Advento. Por conseguinte, se os anos que nos vão aproximando do final do Segundo Milénio depois de Cristo e do início do Terceiro forem cotejados com aquela antiga expectativa histórica do Salvador, torna- se perfeitamente compreensível que neste período desejemos voltar-nos de modo especial para Aquela que, na «noite» da expectativa do Advento, começou a resplandecer como uma verdadeira «estrela da manhã» (Stella matutina). Com efeito, assim como esta estrela, conjuntamente à «aurora», precede o nascer do sol, assim também Maria, desde a sua Conceição imaculada, precedeu a vinda do Salvador, o nascer do «sol da justiça» na história do género humano. (7)

A sua presença no meio do povo de Israel – tão discreta que passava quase despercebida aos olhos dos contemporâneos – brilhava bem clara diante do Eterno, que tinha associado esta ignorada «Filha de Sião» (cf. Sof 3, 14; Zac 2, 14) ao plano salvífico que compreendia toda a história da humanidade. Com razão, pois, no final deste Milénio, nós cristãos, que sabemos ser o plano providencial da Santíssima Trindade a realidade central da revelação e da fé, sentimos a necessidade de pôr em relevo a presença singular da Mãe de Cristo na história, especialmente no decorrer deste último período de tempo que precede o Ano Dois Mil.

4. Para isso nos prepara já o Concílio Vaticano II, ao apresentar no seu magistério a Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreia. Com efeito, se «o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo Incarnado» – como proclama o mesmo Concílio (8) – então é necessário aplicar este princípio, de modo muito particular, àquela excepcional «filha da estirpe humana», àquela «mulher» extraordinária que se tornou Mãe de Cristo. Só no mistério de Cristo «se esclarece» plenamente o seu mistério. Foi assim, de resto, que a Igreja, desde o princípio, procurou fazer a sua leitura: o mistério da Incarnação permitiu-lhe entender e esclarecer cada vez melhor o mistério da Mãe do Verbo Incarnado. Neste aprofundamento teve uma importância decisiva o Concílio de Éfeso (a. 431), durante o qual, com grande alegria dos cristãos, a verdade sobre a maternidade divina de Maria foi confirmada solenemente como verdade de fé da Igreja. Maria é a Mãe de Deus ( = Theotókos), uma vez que, por obra do Espírito Santo, concebeu no seu seio virginal e deu ao mundo Jesus Cristo, o Filho de Deus consubstancial ao Pai. (9) «O Filho de Deus … ao nascer da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós …»,(10) fez-se homem. Deste modo, pois, mediante o mistério de Cristo, resplandece plenamente no horizonte da fé da Igreja o mistério da sua Mãe. O dogma da maternidade divina de Maria, por sua vez, foi para o Concílio de Éfeso e é para a Igreja como que uma chancela no dogma da Incarnação, em que o Verbo assume realmente, sem a anular, a natureza humana na unidade da sua Pessoa.

5. O Concílio Vaticano II, apresentando Maria no mistério de Cristo, encontra desse modo o caminho para aprofundar também o conhecimento do mistério da Igreja. Maria, de facto, como Mãe de Cristo, está unida de modo especial com a Igreja, «que o Senhor constituíu como seu corpo». (11) O texto conciliar põe bem próximas uma da outra, significativamente, esta verdade sobre a Igreja como corpo de Cristo (segundo o ensino das Cartas de São Paulo) e a verdade de que o Filho de Deus «por obra do Espírito Santo nasceu da Virgem Maria». A realidade da Incarnação encontra como que um prolongamento no mistério da Igreja – corpo de Cristo. E não se pode pensar na mesma realidade da Incarnação sem fazer referência a Maria – Mãe do Verbo Incarnado.

Nas reflexões que passo a apresentar, porém, quero referir-me principalmente àquela «peregrinação da fé», na qual «a Bem-aventurada Virgem Maria avançou», conservando fielmente a união com Cristo. (12) Deste modo, aquele dúplice vínculo, que une a Mãe de Deus com Cristo e com a Igreja, reveste-se de um significado histórico. E não se trata aqui simplesmente da história da Virgem Maria, do seu itinerário pessoal de fé e da «melhor parte» que ela tem no mistério da salvação; trata-se também da história de todo o Povo de Deus, de todos aqueles que tomam parte na mesma peregrinação da fé.

É isto o que exprime o Concílio, ao declarar, numa outra passagem, que a Virgem Maria «precedeu», tornando-se «a figura da Igreja, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo».(13) Este seu «preceder», como figura ou modelo, refere-se ao próprio mistério íntimo da Igreja, a qual cumpre a própria missão salvífica unindo em si – à semelhança de Maria – as qualidades de mãe e de virgem. É virgem que «guarda fidelidade total e pura ao seu esposo» e «torna-se, também ela própria, mãe … pois gera para vida nova e imortal os filhos concebidos por acção do Espírito Santo e nascidos de Deus».(14)

6. Tudo isto se realiza num grande processo histórico e, por assim dizer, «numa caminhada». «A peregrinação da fé» indica a história interior, que é como quem diz a história das almas. Mas esta é também a história dos homens, sujeitos nesta terra à condição transitória e situados nas dimensões históricas. Nas reflexões que seguem quereria, juntamente convosco, concentrar-me primeiro que tudo na sua fase presente, que aliás de per si não pertence ainda à história; e, contudo, incessantemente já a vai plasmando, também no sentido de história da salvação. Aqui abre-se um espaço amplo, no interior do qual a Bem-aventurada Virgem Maria continua a «preceder» o Povo de Deus. A sua excepcional peregrinação da fé representa um ponto de referência constante para a Igreja, para as pessoas singulares e para as comunidades, para os povos e para as nações e, em certo sentido, para toda a humanidade. É verdadeiramente difícil abarcar e medir o seu alcance.

O Concílio sublinha que a Mãe de Deus já é a realização escatológica da Igreja: «na Santíssima Virgem ela já atingiu aquela perfeição sem mancha nem ruga que lhe é própria (cf. Et 5, 27)» – e, simultaneamente, que «os fiéis ainda têm de envidar esforços para debelar o pecado e crescer na santidade; e, por isso, eles levantam os olhos para Maria, que brilha como modelo de virtudes sobre toda a comunidade dos eleitos» (15) A peregrinação da fé é algo que já não pertence à Genetriz do Filho de Deus: glorificada nos céus ao lado do próprio Filho, a sua união com o mesmo Deus já transpôs o limiar entre a fé e a visão «face-a-face» (1 Cor 13, 12). Ao mesmo tempo, porém, nesta realização escatológica, Maria não cessa de ser a «estrela do mar» (Maris Stella)(16) para todos aqueles que ainda percorrem o caminho da fé. Se levantam os olhos para Ela nos diversos lugares onde se desenrola a sua existência terrena, fazem-no porque Ela «deu à luz o Filho, que Deus estabeleceu como primogénito entre muitos irmãos» (Rom 8, 29) (17) e também porque «Ela coopera com amor de mãe» para «a regeneração e educação» destes irmãos e irmãs.(18)

PRIMEIRA PARTE

MARIA NO MISTÉRIO DE CRISTO

1. Cheia de graça

7. «Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual no alto dos céus, nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais em Cristo» (Ef 1, 3). Estas palavras da Carta aos Efésios revelam o eterno desígnio de Deus Pai, o seu plano de salvação do homem em Cristo. É um plano universal, que concerne todos os homens criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gén 1, 26). Todos eles, assim como «no princípio» estão compreendidos na obra criadora de Deus, assim também estão eternamente compreendidos no plano divino da salvação, que se deve revelar cabalmente na «plenitude dos tempos», com a vinda de Cristo. Com efeito, «n`Ele», aquele Deus, que é «Pai de nosso Senhor Jesus Cristo» — são as palavras que vêm a seguir na mesma Carta — «nos elegeu antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados aos seus olhos. Por puro amor Ele nos predestinou a sermos adoptados por Ele como filhos, por intermédio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade, para louvor da magnificência da sua graça, pela qual nos tornou agradáveis em seu amado Filho. N`Ele, mediante o seu sangue, temos a redenção, a remissão dos pecados segundo as riquezas da sua graça» (Ef 1, 4-7).

O plano divino da salvação, que nos foi revelado plenamente com a vinda de Cristo, é eterno. Ele é também – segundo o ensino contido na mesma Carta e noutras Cartas paulinas (cf. Col 1, 12-14; Rom 3, 24; Gál 3, 13; 2 Cor 5, 18-29) – algo que está eternamente ligado a Cristo. Ele compreende em si todos os homens; mas reserva um lugar singular à «mulher» que foi a Mãe d`Aquele ao qual o Pai confiou a obra da salvação. (19) Como explana o Concílio Vaticano II, «Maria encontra-se já profeticamente delineada na promessa da vitória sobre a serpente, feita aos primeiros pais caídos no pecado», segundo o Livro do Génesis (cf. 3, 15). «Ela é, igualmente, a Virgem que conceberá e dará à luz um Filho, cujo nome será Emanuel» segundo as palavras de Isaías (cf. 7, 14). (20) Deste modo, o Antigo Testamento prepara aquela «plenitude dos tempos», quando Deus haveria de enviar «o seu Filho, nascido duma mulher …, para que nós recebêssemos a adopção como filhos». A vinda ao mundo do Filho de Deus e o acontecimento narrado nos primeiros capítulos dos Evangelhos segundo São Lucas e segundo São Mateus.

8. Maria é introduzida no mistério de Cristo definitivamente mediante aquele acontecimento que foi a Anunciação do Anjo. Esta deu-se em Nazaré, em circunstâncias bem precisas da história de Israel, o povo que foi o primeiro destinatário das promessas de Deus. O mensageiro divino diz à Virgem: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor é contigo» (Lc 1, 28). Maria «perturbou-se e interrogava-se a si própria sobre o que significaria aquela saudação» (Lc 1, 29): que sentido teriam todas aquelas palavras extraordinárias, em particular, a expressão «cheia de graça» (kecharitoméne). (21)

Se quisermos meditar juntamente com Maria em tais palavras e, especialmente, na expressão «cheia de graça», podemos encontrar uma significativa correspondência precisamente na passagem acima citada da Carta aos Efésios. E se, depois do anúncio do mensageiro celeste, a Virgem de Nazaré é chamada também a «bendita entre as mulheres» (cf. Lc 1, 42), isso explica-se por causa daquela bênção com que «Deus Pai» nos cumulou «no alto dos céus, em Cristo». É uma bênção espiritual, que se refere a todos os homens e traz em si mesma a plenitude e a universalidade («toda a sorte de bênçãos»), tal como brota do amor que, no Espírito Santo, une ao Pai o Filho consubstancial. Ao mesmo tempo, trata-se de uma bênção derramada por obra de Jesus Cristo na história humana até ao fim: sobre todos os homens. Mas esta bênção refere-se a Maria em medida especial e excepcional: ela, de facto, foi saudada por Isabel como «a bendita entre as mulheres».

O motivo desta dupla saudação, portanto, está no facto de se ter manifestado na alma desta «filha de Sião», em certo sentido, toda a «magnificência da graça», daquela graça com que «o Pai … nos tornou agradáveis em seu amado Filho». O mensageiro, efectivamente, saúda Maria como «cheia de graça»; e chama-lhe assim, como se este fosse o seu verdadeiro nome. Não chama a sua interlocutora com o nome que lhe é próprio segundo o registo terreno: «Miryam» ( = Maria); mas sim com este nome novo: «cheia de graça». E o que significa este nome? Por que é que o Arcanjo chama desse modo à Virgem de Nazaré?

Na linguagem da Bíblia «graça» significa um dom especial, que, segundo o Novo Testamento, tem a sua fonte na vida trinitária do próprio Deus, de Deus que é amor (cf. 1 Jo 4, 8). É fruto deste amor a «eleição» – aquela eleição de que fala a Carta aos Efésios. Da parte de Deus esta «escolha» é a eterna vontade de salvar o homem, mediante a participação na sua própria vida divina (cf. 2 Pdr 1, 4) em Cristo: é a salvação pela participação na vida sobrenatural. O efeito deste dom eterno, desta graça de eleição do homem por parte de Deus, é como que um gérmen de santidade, ou como que uma nascente a jorrar na alma do homem, qual dom do próprio Deus que, mediante a graça, vivifica e santifica os eleitos. Desta forma se verifica, isto é, se torna realidade aquela «bênção» do homem «com toda a sorte de bênçãos espirituais», aquele «ser seus filhos adoptivos … em Cristo», ou seja, n`Aquele que é desde toda a eternidade o «Filho muito amado» do Pai.

Quando lemos que o mensageiro diz a Maria «cheia de graça», o contexto evangélico, no qual confluem revelações e promessas antigas, permite-nos entender que aqui se trata de uma «bênção» singular entre todas as «bênçãos espirituais em Cristo». No mistério de Cristo, Maria está presente já «antes da criação do mundo», como aquela a quem o Pai «escolheu» para Mãe do seu Filho na Incarnação — e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também o Filho, confiando-a eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste «Filho muito amado» desde toda a eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda «a magnificência da graça». Ao mesmo tempo, porém, ela é e permanece perfeitamente aberta para este «dom do Alto» (cf. Tg 1, 17) Como ensina o Concílio, Maria «é a primeira entre os humildes e os pobres do Senhor, que confiadamente esperam e recebem d`Ele a salvação». (22)

9. A saudação e o nome «cheia de graça» dizem-nos tudo isto; mas, no contexto do anúncio do Anjo, referem-se em primeiro lugar à eleição de Maria como Mãe do Filho de Deus. Todavia, a plenitude de graça indica ao mesmo tempo toda a profusão de dons sobrenaturais com que Maria é beneficiada em relação com o facto de ter sido escolhida e destinada para ser Mãe de Cristo. Se esta eleição é fundamental para a realização dos desígnios salvíficos de Deus, a respeito da humanidade, e se a escolha eterna em Cristo e a destinação para a dignidade de filhos adoptivos se referem a todos os homens, então a eleição de Maria é absolutamente excepcional e única. Daqui deriva também a singularidade e unicidade do seu lugar no mistério de Cristo.

O mensageiro divino diz-lhe: «Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo» (Lc 1, 30-32). E quando a Virgem, perturbada por esta saudação extraordinária, pergunta: «Como se realizará isso, pois eu não conheço homem?», recebe do Anjo a confirmação e a explicação das palavras anteriores. Gabriel diz-lhe: «Virá sobre ti o Espírito Santo e a potência do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus» (Lc 1, 35).

A Anunciação, portanto, é a revelação do mistério da Incarnação exactamente no início da sua realização na terra. A doação salvífica que Deus faz de si mesmo e da sua vida, de alguma maneira a toda a criação e, directamente, ao homem, atinge no mistério da Incarnação um dos seus pontos culminantes. Isso constitui, de facto, um vértice de todas as doações de graça na história do homem e do cosmos. Maria é a «cheia de graça», porque a Incarnação do Verbo, a união hipostática do Filho de Deus com a natureza humana, se realiza e se consuma precisamente nela. Como afirma o Concílio, Maria é «Mãe do Filho de Deus e, por isso, filha predilecta do Pai e templo do Espírito Santo; e, por este insigne dom de graça, leva vantagem a todas as demais criaturas do céu e da terra». (23)

10. A Carta aos Efésios, falando da «magnificência da graça» pela qual «Deus Pai … nos tornou agradáveis em seu amado Filho», acrescenta: «N`Ele temos a redenção pelo seu sangue» (Ef 1, 7). Segundo a doutrina formulada em documentos solenes da Igreja, esta «magnificência da graça» manifestou-se na Mãe de Deus pelo facto de ela ter sido «redimida de um modo mais sublime». (24) Em virtude da riqueza da graça do amado Filho e por motivo dos merecimentos redentores d`Aquele que haveria de tornar-se seu Filho, Maria foi preservada da herança do pecado original. (25) Deste modo, logo desde o primeiro instante da sua concepção, ou seja da sua existência, ela pertence a Cristo, participa da graça salvífica e santificante e daquele amor que tem o seu início no «amado Filho», no Filho do eterno Pai que, mediante a Incarnação, se tornou o seu próprio Filho. Sendo assim, por obra do Espírito Santo, na ordem da graça, ou seja, da participação da natureza di vina, Maria recebe a vida d`Aquele, ao qual ela própria, na ordem da geração terrena, deu a vida como mãe. A Liturgia não hesita em chamá-la «genetriz do seu Genitor» (26) e em saudá-la com as palavras que Dante Alighieri põe na boca de São Bernardo: «filha do teu Filho» (27). E, uma vez que Maria recebe esta «vida nova» numa plenitude correspondente ao amor do Filho para com a Mãe, e por conseguinte à dignidade da maternidade divina, o Anjo na Anunciação chama-lhe «cheia de graça».

11. No desígnio salvífico da Santíssima Trindade o mistério da Incarnação constitui o cumprimento superabundante da promessa feita por Deus aos homens, depois do pecado original, depois daquele primeiro pecado cujos efeitos fazem sentir o seu peso sobre toda a história do homem na terra (cf. Gén 3, 15). E eis que vem ao mundo um Filho, a «descendência da mulher», que vencerá o mal do pecado nas suas próprias raízes: «esmagará a cabeça» da serpente. Como resulta das palavras do Proto-Evangelho, a vitória do Filho da mulher não se verificará sem uma árdua luta, que deve atravessar toda a história humana. «A inimizade», anunciada no princípio, é confirmada no Apocalipse, o livro das realidades últimas da Igreja e do mundo, onde volta a aparecer o sinal de uma «mulher», desta vez «vestida de sol» (Apoc 12, 1).

Maria, Mãe do Verbo Incarnado, está colocada no próprio centro dessa «inimizade», dessa luta que acompanha o evoluir da história da humanidade sobre a terra e a própria história da salvação. Neste seu lugar, ela, que faz parte dos «humildes e pobres do Senhor», apresenta em si, como nenhum outro dentre os seres humanos, aquela «magnificência de graça» com que o Pai nos agraciou no seu amado Filho; e esta graça constitui a extraordinária grandeza e beleza de todo o seu ser. Maria permanece, assim, diante de Deus e também diante de toda a humanidade, como o sinal imutável e inviolável da eleição por parte do mesmo Deus, de que fala a Carta paulina: «em Cristo nos elegeu antes da criação do mundo … e nos predestinou para sermos seus filhos adoptivos» (Ef 1, 4. 5). Esta eleição é mais forte do que toda a experiência do mal e do pecado, do que toda aquela «inimizade» pela qual está marcada toda a história do homem. Nesta história, Maria permanece um sinal de segura esperança.

2. Feliz daquela que acreditou

12. Logo depois de ter narrado a Anunciação, o Evangelista São Lucas faz-nos de guia, seguindo os passos da Virgem em direcção a «uma cidade de Judá» (Lc 1, 39). Segundo os estudiosos, esta cidade devia ser a «Ain-Karim» de hoje, situada entre as montanhas, não distante de Jerusalém. Maria dirigiu-se para lá «apressadamente», para visitar Isabel, sua parente. O motivo desta visita há-de ser procurado também no facto de Gabriel, durante a Anunciação, ter nomeado de maneira significativa Isabel, que em idade avançada tinha concebido do marido Zacarias um filho, pelo poder de Deus: «Isabel, tua parente, concebeu um filho, na sua velhice; e está já no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, porque nada é impossível a Deus» (Lc 1, 36-37). O mensageiro divino tinha feito recurso ao evento, que se realizara em Isabel, para responder à pergunta de Maria: «Como se realizará isso, pois eu não conheço homem?» (Lc 1, 34). Sim, será possível exactamente pelo «poder do Altíssimo», como e ainda mais do que no caso de Isabel.

Maria dirige-se, pois, impelida pela caridade, a casa da sua parente. Quando aí entrou, Isabel, ao responder à sua saudação, tendo sentido o menino estremecer de alegria no próprio seio, «cheia do Espírito Santo», saúda por sua vez Maria em alta voz: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» (cf. Lc 1, 40-42). Esta proclamação e aclamação de Isabel deveria vir a entrar na Ave Maria, como continuação da saudação do Anjo, tornando-se assim uma das orações mais frequentes da Igreja. Mas são ainda mais significativas as palavras de Isabel, na pergunta que se segue: «E donde me é dada a dita que venha ter comigo a mãe do meu Senhor?» (Lc 1, 43). Isabel dá testemunho acerca de Maria: reconhece e proclama que diante de si está a Mãe do Senhor, a Mãe do Messias. Neste testemunho participa também o filho que Isabel traz no seio: «estremeceu de alegria o menino no meu seio» (Lc 1, 44). O menino é o futuro João Baptista, que, nas margens do Jordão, indicará em Jesus o Messias.

Todas as palavras, nesta saudação de Isabel, são densas de significado; no entanto, parece ser algo de importância fundamental o que ela diz no final: «Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1, 45). (28) Estas palavras podem ser postas ao lado do apelativo «cheia de graça» da saudação do Anjo. Em ambos os textos se revela um conteúdo mariológico essencial, isto é, a verdade acerca de Maria, cuja presença se tornou real no mistério de Cristo, precisamente porque ela «acreditou». A plenitude de graça, anunciada pelo Anjo, significa o dom de Deus mesmo; a fé de Maria, proclamada por Isabel aquando da Visitação, mostra como a Virgem de Nazaré tinha correspondido a este dom.

13. «A Deus que revela é devida ¨a obediência da fé¨ (Rom 16, 26; cf. Rom 1, 5; 2 Cor 10, 5-6), pela qual o homem se entrega total e livremente a Deus», como ensina o Concílio. (29) Exactamente esta descrição da fé teve em Maria uma actuação perfeita. O momento «decisivo» foi a Anunciação; e as palavras de Isabel – «feliz daquela que acreditou» – referem-se em primeiro lugar precisamente a esse momento. (30)

Na Anunciação, de facto, Maria entregou-se a Deus completamente, manifestando «a obediência da fé» Àquele que lhe falava, mediante o seu mensageiro, prestando-lhe o «obséquio pleno da inteligência e da vontade». (31) Ela respondeu, pois, com todo o seu «eu» humano e feminino. Nesta resposta de fé estava contida uma cooperação perfeita com a «prévia e concomitante ajuda da graça divina» e uma disponibilidade perfeita à acção do Espírito Santo, o qual «aperfeiçoa continuamente a fé mediante os seus dons». (32)

A palavra de Deus vivo, anunciada pelo Anjo a Maria, referia-se a ela própria: «Eis que conceberás e darás à luz um filho» (Lc 1, 31). Acolhendo este anúncio, Maria devia tornar-se a «Mãe do Senhor» e realizar-se-ia nela o mistério divino da Incarnação: «O Pai das misericórdias quis que a aceitação por parte da que Ele predestinara para mãe, precedesse a Incarnação». (33) E Maria dá esse consenso, depois de ter ouvido todas as palavras do mensageiro. Diz: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). Este fiat de Maria – «faça-se em mim» – decidiu, da parte humana, do cumprimento do mistério divino. Existe uma consonância plena com as palavras do Filho que, segundo a Carta aos Hebreus, ao vir a este mundo, diz ao Pai: «Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas formaste-me um corpo… Eis que venho… para fazer, ó Deus, a tua vontade» (Hebr 10, 5-7). O mistério da Incarnação realizou-se quando Maria pronunciou o seu «fiat»: «Faça-se em mim segundo a tua palavra», tornando possível, pelo que a ela competia no desígnio divino, a aceitação do oferecimento do seu Filho.

Maria pronunciou este «fiat» mediante a fé. Foi mediante a fé que ela «se entregou a Deus» sem reservas e «se consagrou totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra do seu Filho». (34) E este Filho — como ensinam os Padres da Igreja — concebeu-o na mente antes de o conceber no seio: precisamente mediante a fé! (35) Com justeza, portanto, Isabel louva Maria: «Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor». Essas coisas já se tinham cumprido: Maria de Nazaré apresenta-se no limiar da casa de Isabel e de Zacarias como mãe do Filho de Deus. É essa a descoberta letificante de Isabel: «A mãe do meu Senhor vem ter comigo!».

14. Por conseguinte, também a fé de Maria pode ser comparada com a de Abraão, a quem o Apóstolo chama «nosso pai na fé» (cf. Rom 4, 12). Na economia salvífica da Revelação divina, a fé de Abraão constitui o início da Antiga Aliança; a fé de Maria, na Anunciação, dá início à Nova Aliança. Assim como Abraão, «esperando contra toda a esperança, acreditou que haveria de se tornar pai de muitos povos» (cf. Rom 4, 18 ), também Maria, no momento da Anunciação, depois de ter declarado a sua condição de virgem («Como será isto, se eu não conheço homem?»), acreditou que pelo poder do Altíssimo, por obra do Espírito Santo, se tornaria a mãe do Filho de Deus segundo a revelação do Anjo: «Por isso mesmo o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus» (Lc 1, 35).

Entretanto, as palavras de Isabel: «Feliz daquela que acreditou» não se aplicam apenas àquele momento particular da Anunciação. Esta representa, sem dúvida, o momento culminante da fé de Maria na expectação de Cristo, mas é também o ponto de partida, no qual se inicía todo o seu «itinerário para Deus», toda a sua caminhada de fé. E será ao longo deste caminho, que a «obediência» por ela professada à palavra da revelação divina irá ser actuada, de modo eminente e verdadeiramente heróico ou, melhor dito, com um heroísmo de fé cada vez maior. E esta «obediência da fé» da parte de Maria, durante toda a sua caminhada, terá surpreendentes analogias com a fé de Abraão. Do mesmo modo que o patriarca do Povo de Deus, também Maria, ao longo do caminho do seu fiat filial e materno, «esperando contra toda a esperança, acreditou». Especialmente ao longo de algumas fases deste seu caminhar, a bênção concedida «àquela que acreditou» tornar-se-á manifesta com particular evidência. Acreditar quer dizer «abandonar-se» à própria verdade da palavra de Deus vivo, sabendo e reconhecendo humildemente «quanto são insondáveis os seus desígnios e imperscrutáueis as suas vias» (Rom 11, 33). Maria, que pela eterna vontade do Altíssimo veio a encontrar-se, por assim dizer, no próprio centro daquelas «imperscrutáveis vias» e daqueles «insondáveis desígnios» de Deus, conforma-se a eles na obscuridade da fé, aceitando plenamente e com o coração aberto tudo aquilo que é disposição dos desígnios divinos.

15. Na Anunciação, quando Maria ouve falar do Filho de que deve tornar-se genetriz e ao qual «porá o nome de Jesus» (= Salvador), fica também a conhecer que «o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai David», que ele «reinará sobre a casa de Jacob eternamente e o seu reinado não terá fim» (Lc 1, 32-33). Era neste sentido que se orientava toda a esperança de Israel. O Messias prometido devia ser «grande»; e também o mensageiro celeste anuncia que «será grande»: grande, quer pelo nome de Filho do Altíssimo, quer pelo facto de assumir a herança de David. Há-de, portanto, ser rei, há-de reinar «sobre a casa de Jacob». Maria tinha crescido no meio desta expectativa do seu povo: estaria ela em condições de captar, no momento da Anunciação, qual o sentido essencial que podiam ter as palavras do Anjo, e como devia ser entendido aquele «reino», que «não terá fim»?

Se bem que, mediante a fé, ela possa ter-se sentido naquele instante mãe do «Messias-rei», contudo respondeu: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). Desde o primeiro momento, Maria professou sobretudo «a obediência da fé», abandonando-se àquele sentido que dava às palavras da Anunciação Aquele do qual elas provinham: o próprio Deus.

16. No caminho da «obediência da fé», ainda, Maria, um pouco mais tarde, ouve outras palavras: aquelas que foram pronunciadas por Simeão, no templo de Jerusalém. Estava-se já no quadragésimo dia depois do nascimento de Jesus, quando Maria e José, segundo a prescrição da Lei de Moisés, «levaram o menino a Jerusalém, para o oferecer ao Senhor» (Lc 2, 22). O nascimento verificara-se em condições de extrema pobreza. Com efeito, sabemos através de São Lucas que, por ocasião do recenseamento da população ordenado pelas autoridades romanas, Maria se dirigiu com José a Belém; e não tendo encontrado «lugar na hospedaria», deu à luz o seu Filho num estábulo e «reclinou-o numa manjedoura» (cf. Lc 2, 7).

Um homem justo e piedoso, de nome Simeão, aparece naquele momento dos inícios do «itinerário» da fé de Maria. As suas palavras, sugeridas pelo Espírito Santo (cf. Lc 2, 25-27), confirmam a verdade da Anunciação. Lemos, efectivamente, que ele «tomou nos seus braços» o menino, ao qual – segundo a palavra do Anjo – deram o nome de Jesus» (cf. Lc 2, 21). Aquilo que Simeão diz está conforme com o significado deste nome, que quer dizer Salvador: «Deus é a salvação». Dirigindo-se ao Senhor, ele exprime-se assim: «Os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste em favor de todos os povos; luz para iluminar as nações e glória de Israel, teu povo» (Lc 2, 30-32). Nessa mesma altura, porém, Simeão dirige-se a Maria com as seguintes palavras: «Ele é destinado a ser ocasião de queda e de ressurgimento para muitos em Israel e a ser um sinal de contradição… a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações»; e acrescenta, com referência directa a Maria: «E tu mesma terás a alma trespassada por uma espada» (Lc 2, 34-35). As palavras de Simeão colocam sob uma luz nova o anúncio que Maria tinha ouvido do Anjo: Jesus é o Salvador, é «luz para iluminar» os homens. Não foi isso que, de algum modo, se manifestou na noite de Natal, quando os pastores vieram ao estábulo? (cf. Lc 2, 8-20). Não foi isso o que se manifestou também e ainda mais, aquando da vinda dos Magos do Oriente? (cf. Mt 2, 1-12 ) . Ao mesmo tempo, porém, logo desde o início da sua vida, o Filho de Maria, e com ele a sua Mãe, experimentarão em si mesmos a verdade daquelas outras palavras de Simeão: «Sinal de contradição» (Lc 2, 34). Aquilo que Simeão diz apresenta-se como um segundo anúncio a Maria, uma vez que indica a dimensão histórica concreta em que o Filho realizará a sua missão, ou seja, na incompreensão e na dor. Se este outro anúncio confirma, por um lado, a sua fé no cumprimento das promessas divinas da salvação, por outro, também lhe revela que ela terá que viver a sua obediência de fé no sofrimento, ao lado do Salvador que sofre, e que a sua maternidade será obscura e marcada pela dor. Com efeito, depois da visita dos Magos, depois de eles lhe terem rendido homenagem («prostrados o adoraram») e depois da oferta dos dons (cf. Mt 2, 11), sucede que Maria, com o menino, tem de fugir para o Egipto sob a proteção desvelada de José, porque Herodes estava a «procurar o menino para o matar» (cf. Mt 2, 13). E teriam de ficar no Egipto até à morte de Herodes (cf. Mt 2, 15).

17. Depois da morte de Herodes, quando se dá o retorno da sagrada família a Nazaré, inicia-se o longo período da vida oculta. Aquela que «acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1, 45) vive no dia a dia o conteúdo dessas palavras. O Filho a quem deu o nome de Jesus está quotidianamente ao seu lado; assim, no contacto com ele, usa certamente este nome, o que não devia, aliás, causar estranheza a ninguém, tratando-se de um nome que era usual, desde havia muito tempo, em Israel. Maria sabe, no entanto, que aquele a quem foi posto o nome de Jesus, foi chamado pelo Anjo «Filho do Altíssimo» (cf. Lc 1, 32). Maria sabe que o concebeu e deu à luz «sem ter conhecido homem», por obra do Espírito Santo, com o poder do Altíssimo que sobre ela estendeu a sua sombra (cf. Lc 1, 35), tal como nos tempos de Moisés e dos antepassados a nuvem velava a presença de Deus (cf. Ex 24, 16; 40, 34-35; 1 Rs 8, 10-12). Maria sabe, portanto, que o Filho, por ela dado à luz virginalmente, é precisamente aquele «Santo», «o Filho de Deus» de que lhe havia falado o Anjo.

Durante os anos da vida oculta de Jesus na casa de Nazaré, também a vida de Maria «está escondida com Cristo em Deus» (cf. Col 3, 3) mediante a fé. A fé, efectivamente, é um contacto com o mistério de Deus. Maria está constante e quotidianamente em contacto com o mistério inefável de Deus que se fêz homem, mistério que supera tudo aquilo que foi revelado na Antiga Aliança. Desde o momento da Anunciação, a mente da Virgem-Mãe foi introduzida na «novidade» radical de autorevelação de Deus e tornada cônscia do mistério. Ela é a primeira daqueles «pequeninos» dos quais um dia Jesus dirá: «Pai, … escondeste estas coisas aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11, 25). Na verdade, «ninguém conhece o Filho senão o Pai» (Mt 11, 27). Como poderá então Maria «conhecer o Filho»? Certamente, não como o Pai o conhece; e no entanto, ela é a primeira entre aqueles aos quais o Pai «o quis revelar» (cf. Mt 11, 26-27; 1 Cor 2, 11). Se, porém, desde o momento da Anunciação lhe foi revelado o Filho, que apenas o Pai conhece completamente, como Aquele que o gera no «hoje» eterno (cf. Sl 2, 7), então Maria, a Mãe, está em contacto com a verdade do seu Filho somente na fé e mediante a fé! Portanto, é feliz porque «acreditou»; e acredita dia a dia, no meio de todas as provações e contrariedades do período da infância de Jesus e, depois, durante os anos da sua vida oculta em Nazaré, quando ele «lhes era submisso» (Lc 2, 51): submisso a Maria e também a José, porque José, diante dos homens, fazia para ele as vezes de pai; e era por isso que o Filho de Maria era tido pela gente do lugar como «o filho do carpinteiro» (Mt 13, 55).

A Mãe, por conseguinte, lembrada de tudo o que lhe havia sido dito acerca deste seu Filho, na Anunciação e nos acontecimentos sucessivos, é portadora em si mesma da «novidade» radical da fé: o início da Nova Aliança. Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de «noite da fé» – para usar as palavras de São João da Cruz – como que um «véu» através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério. (36) Foi deste modo, efectivamente, que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé, à medida em que Jesus «crescia em sabedoria … e graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2, 52). Manifestava-se cada vez mais aos olhos dos homens a predilecção que Deus tinha por ele. A primeira entre estas criaturas humanas admitidas à descoberta de Cristo foi Maria que, com Ele e com José, vivia na mesma casa em Nazaré.

Todavia, na ocasião em que o reencontraram no templo, à pergunta da Mãe: «Por que procedeste assim connosco?», Jesus – então menino de doze anos – respondeu: «Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?»; e o Evangelista acrescenta: «Mas eles (José e Maria) não entenderam as suas palavras» (Lc 2, 48-50). Portanto, Jesus tinha a consciência de que «só o Pai conhece o Filho» (cf. Mt 11, 27); tanto assim, que até aquela a quem tinha sido revelado mais profundamente o mistério da sua filiação divina, a sua Mãe, vivia na intimidade com este mistério somente mediante a fé! Encontrando-se constantemente ao lado do Filho, sob o mesmo tecto, e «conservando fielmente a união com o Filho» Ela «avançava na peregrinação da fé», como acentua o Concílio. (37) E assim sucedeu também durante a vida pública de Cristo (cf. Mc 3, 21-35) pelo que, dia a dia, se cumpriram nela as palavras abençoantes pronunciadas por Isabel, aquando da Visitação: «Feliz daquela que acreditou».

18. Estas palavras abençoantes atingem a plenitude do seu significado, quando Maria está aos pés da Cruz do seu Filho (cf. Jo 19, 25). O Concílio afirma que isso «aconteceu não sem um desígnio divino»: «padecendo acerbamente com o seu Unigénito, associando-se com ânimo maternal ao seu sacrifício e consentindo com amor na imolação da vítima que ela havia gerado», foi deste modo que Maria «conservou fielmente a união com seu Filho até à Cruz», (38) a união mediante a fé: a mesma fé com a qual tinha acolhido a revelação do Anjo no momento da Anunciação. Nesse momento ela tinha também ouvido dizer: «será grande …, o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de seu pai David…, reinará eternamente na casa de Jacob e o seu reinado não terá fim» (Lc 1, 32-33).

E agora, estando ali aos pés da Cruz, Maria é testemunha, humanamente falando, do desmentido cabal dessas palavras. O seu Filho agoniza, suspenso naquele madeiro como um condenado. «Desprezado e rejeitado pelos homens; homem das dores…; era menosprezado e nenhum caso fazíamos dele» … como que destruído (cf. Is 53, 3-5 ). Quão grande e quanto foi heróica então a «obediência da fé» demonstrada por Maria diante dos «insondáveis desígnios» de Deus! Como ela se «abandonou nas mãos de Deus» sem reservas, «prestando o pleno obséquio da inteligência e da vontade» (39) Àquele cujas «vias são imperscrutáveis!» (cf. Rom 11, 33). E, ao mesmo tempo, quanto se mostra potente a acção da graça na sua alma e quanto é penetrante a influência do Espírito Santo, da sua luz e da sua virtude!

Mediante essa sua fé, Maria está perfeitamente unida a Cristo no seu despojamento. Com efeito, «Jesus Cristo, … subsistindo na natureza divina, não julgou o ser igual a Deus, um bem a que não devesse nunca renunciar; mas despojou-se a si mesmo tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens»: precisamente sobre o Gólgota «humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de Cruz» (cf. Flp 2, 5-8). E aos pés da Cruz, Maria participa mediante a fé no mistério desconcertante desse despojamento. Isso constitui, talvez, a mais profunda «kénose» da fé na história da humanidade. Mediante a fé, a Mãe participa na morte do Filho, na sua morte redentora; mas, bem diferente da fé dos discípulos, que se davam à fuga, a fé de Maria era muito mais esclarecida. Sobre o Gólgota, Jesus confirmou definitivamente, por meio da Cruz, ser «o sinal de contradição» predito por Simeão. Ao mesmo tempo, cumpriram-se aí as palavras dirigidas pelo mesmo ancião a Maria: «E tu mesma terás a alma trespassada por uma espada». (40)

19. Sim, verdadeiramente, «feliz daquela que acreditou»! Estas palavras, pronunciadas por Isabel já depois da Anunciação, parecem ressoar aqui, aos pés da Cruz, com suprema eloquência; e a força que elas encerram, torna-se penetrante. Da Cruz ou, por assim dizer, do próprio coração do mistério da Redenção, se esparge a irradiação e se dilata a perspectiva daquelas palavras abençoadoras da sua fé. Elas remontam «até ao princípio» e, como participação no sacrifício de Cristo, novo Adão, tornam-se, em certo sentido, o contrabalanço da desobediência e da incredulidade presentes no pecado dos nossos primeiros pais. Assim o ensinam os Padres da Igreja, especialmente Santo Ireneu, citado na Constituição Lumen Gentium: «O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a Virgem Eva atou, com a sua incredulidade, a Virgem Maria desatou-o com a sua fé». (41) À luz desta comparação com Eva, os mesmos Padres – como recorda ainda o Concílio – chamam a Maria «mãe dos vivos» e afirmam muitas vezes: «A morte veio por Eva, a vida por meio de Maria». (42)

Com razão, portanto, podemos encontrar na expressão «feliz daquela que acreditou» como que uma chave que nos abre o acesso à realidade íntima de Maria: daquela que foi saudada pelo Anjo como «cheia da graça». Se como «cheia de graça» ela esteve eternamente presente no mistério de Cristo, agora, mediante a fé, torna-se dele participante em toda a extensão do seu itinerário terreno: «avançou na peregrinação da fé» e, ao mesmo tempo, de maneira discreta, mas directa e eficazmente, tornava presente aos homens o mesmo mistério de Cristo. E ainda continua a fazê-lo. E mediante o mistério de Cristo, também ela está presente entre os homens. Deste modo, através do mistério do Filho, esclarece-se também o mistério da Mãe.

3. Eis a tua mãe

20. O Evangelho de São Lucas regista o momento em que «uma mulher ergueu a voz do meio da multidão e disse», dirigindo-se a Jesus: «Ditoso o ventre que te trouxe e os seios a que foste amamentado!» (Lc 11, 27). Estas palavras constituíam um louvor para Maria, como mãe de Jesus segundo a carne. A Mãe de Jesus talvez não fosse conhecida pessoalmente por essa mulher; de facto, quando Jesus iniciou a sua actividade messiânica, Maria não o acompanhava, mas continuava a viver em Nazaré. Dir-se-ia que as palavras dessa mulher desconhecida a fizeram sair, de algum modo, do seu escondimento.

Através de tais palavras lampejou no meio da multidão, ao menos por um instante, o evangelho da infância de Jesus. É o evangelho em que Maria está presente como a mãe que concebe Jesus no seu seio, o dá à luz e maternamente o amamenta: a mãe-nutriz, a que alude aquela mulher do povo. Graças a esta maternidade, Jesus – Filho do Altíssimo (cf. Lc 1, 32 ) – é um verdadeiro filho do homem. É «carne», como todos os homens. é «o Verbo (que) se fez carne» (cf. Jo 1, 14). É carne e sangue de Maria! (43)

Mas, às palavras abençoantes proferidas por aquela mulher em relação à sua genetriz segundo a carne, Jesus responde de modo significativo: «Ditosos antes os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 11, 28). Ele quer desviar a atenção da maternidade entendida só como um vínculo do sangue, para a orientar no sentido daqueles vínculos misteriosos do espírito, que se formam com o prestar ouvidos e com a observância da palavra de Deus.

A mesma transferência, na esfera dos valores espirituais, delineia-se ainda mais claramente numa outra resposta de Jesus, relatada por todos os Sinópticos. Quando foi anunciado ao mesmo Jesus que a sua «mãe e os seus irmãos estavam lá fora e desejavam vê-lo», ele respondeu: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática» (cf. Lc 8, 20-21). Disse isto «percorrendo com o olhar os que estavam sentados à volta dele», como lemos em São Marcos (3, 34) ou, segundo São Mateus (12, 49), «indicando com a mão os seus discípulos».

Estas expressões parecem situar-se na linha daquilo que Jesus – então menino de doze anos – respondeu a Maria e José, quando foi reencontrado, depois de três dias, no templo de Jerusalém.

Agora, uma vez que Jesus já tinha saído de Nazaré para dar início à sua vida pública por toda a Palestina, estava doravante completa e exclusivamente «ocupado nas coisas do Pai» (cf. Lc 2, 49). Ocupava-se em anunciar o Reino: o «Reino de Deus» e as «coisas do Pai», que dão também uma dimensão nova e um sentido novo a tudo aquilo que é humano; e, por conseguinte, a todos os laços humanos, em relação com os fins e as funções estabelecidos para cada um dos homens. Com esta nova dimensão, também um laço, como o da «fraternidade» significa algo de diverso da «fraternidade segundo a carne», que provém da origem comum dos mesmos pais. E até mesmo a «maternidade», vista na dimensão do Reino de Deus, na irradiação da paternidade do próprio Deus, alcança um outro sentido. Com as palavras referidas por São Lucas, Jesus ensina precisamente este novo sentido da maternidade.

Ter-se-á afastado, por causa disto, daquela que foi sua mãe, a sua genetriz segundo a carne? Desejará, porventura, deixá-la na sombra do escondimento, que ela própria escolheu? Embora assim possa parecer, se nos ativermos só ao som material daquelas palavras, devemos observar, no entanto, que a maternidade nova e diversa, de que Jesus fala aos seus discípulos, refere-se precisamente a Maria e de modo especialíssimo. Não é, acaso, Maria a primeira dentre «aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática»? E portanto, não se referirão sobretudo a ela aquelas palavras abençoantes pronunciadas por Jesus, em resposta às palavras da mulher anónima? Maria é digna, sem dúvida alguma, de tais palavras de bênção, pelo facto de se ter tornado Mãe de Jesus segundo a carne («Ditoso o ventre que te trouxe e os seios a que foste amamentado»); mas é digna delas também e sobretudo porque, logo desde o momento da Anunciação, acolheu a palavra de Deus e porque nela acreditou e sempre foi obediente a Deus; ela, com efeito, «guardava» a palavra, meditava-a «no seu coração» (cf. Lc 1, 38-45; 2, 19. 51) e cumpria-a com toda a sua vida. Podemos, portanto, afirmar que as palavras de bem-aventurança pronunciadas por Jesus não se contrapõem, apesar das aparências, àquelas outras que foram proferidas pela mulher desconhecida; mas antes, que com elas se coadunam na pessoa desta Mãe-Virgem, que a si mesma se designou simplesmente como «serva do Senhor» (Lc 1, 38). Se é verdade que «todas as gerações a chamarão bem-aventurada» (cf. Lc 1, 48), pode dizer-se que aquela mulher anónima foi a primeira a confirmar, sem disso ter consciência, aquele versículo profético do Magnificat de Maria e a dar início ao Magnificat dos séculos.

Se Maria, mediante a fé, se tornou a genetriz do Filho que lhe foi dado pelo Pai com o poder do Espí

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