Epístola a todos os cristãos

Urbano I foi papa da Igreja Católica entre os anos 222 e 230, nos tempos do imperador Alexandre Severo. Nesta carta, Urbano exorta os fiéis a perseverarem no antigo costume da posse comum de bens entre os cristão e explica a prática dos fiéis doarem bens à Igreja para a manutenção do clero e dos irmãos mais necessitados. Em outro ponto, fundamenta a primazia da sé episcopal nas igrejas. Convida também a considerar e respeitar o juízo do bispo sobre as pessoas tidas por perigosas para a comunidade.

 

Urbano, bispo, a todos os cristãos: na santificação do Espírito, em obediência e aspersão do Sangue de Cristo nosso Senhor, eu vos saúdo.

Convém a todos os cristãos, meus bem-amados irmãos, imitar Aquele cujo nome receberam. “De que serve, irmãos” – diz o apóstolo São Tiago – “que um homem diga que tem fé, se não tem obras?” [Tg 2,14]. “Irmãos: não queiram ser, muitos de vós, mestres, sabendo que receberão a maior condenação, já que em muitas coisas ofendemos a todos” [Tg 3,1-2]. “Deixai que aquele que é sabio e dotado de sabedoria entre vós, mostre o que ensina em suas ações realizadas com a humildade da sabedoria” [Tg 3,13].

I. A vida em comum e a razão pela qual a Igreja começou a possuir propriedades

Sabemos que vocês não ignoram que até hoje em dia o princípio de viver com todas as coisas em comum tem vigorado entre os bons cristãos e, pela graça de Deus, permanece sendo assim, sobretudo entre aqueles que foram escolhidos para a messe do Senhor, isto é, os clérigos, tal como lemos nos Atos dos Apóstolos: “A multidão dos fiéis tinha um só coração e uma só alma, e ninguém dizia que qualquer coisa que possuía era indigna, mas tinha [essa multidão] todas as coisas em comum. E, com grande vigor, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus e graça abundante havia entre todos eles. Também ninguém entre eles passava por necessidade, pois todos os que possuíam terras ou casas, as vendiam, e traziam o seu valor aos pés dos apóstolos, e a distribuição era feita a cada pessoa segundo suas necessidades. E José, chamado Barnabé pelos apóstolos – o que significa ‘filho da consolação’ -, um levita natural do Chipre, as vendeu e depositou o seu valor aos pés dos apóstolos” [At 4,32-37]; e isso continua assim. E é por isso que os sumos sacerdotes e os demais, os levitas e o resto dos fiéis, perceberam que era mais vantajoso se entregassem às igrejas dirigidas pelos bispos, as heranças e campos que iam vendendo, pois assim poderiam organizar muito melhor a manutenção dos irmãos na fé, e ainda mais com as rendas das propriedades do que com o dinheiro que conseguiriam caso a vendessem; isto vale não apenas para o presente, como também para os tempos futuros, pois se começou a consignar às igrejas-mães a propriedade e as terras que iam vender, passando-se para o modo de viver com as rendas destas.

II. As pessoas e os usos em relação às propriedades eclesiásticas e os invasores destas

Em acréscimo, as propriedades que possuíam várias paróquias foram entegues aos bispos, que mantêm o cargo dos apóstolos. Isto é assim até hoje e deve continuar a ser sempre assim, no futuro. Dessas possessões, os bispos e os fiéis, que são seus administradores, devem satisfazer a todos os que desejam ter vida em comum, gerenciando as necessidades da melhor maneira possível, de tal sorte que ninguém seja encontrado passando necessidade entre eles. Por essa razão, as possessões dos fiéis são também chamadas oblações, pois que são oferecidas ao Senhor. Não devem, pois, ser desviadas para outros usos alheios aos pretendidos pela Igreja, em benefício dos irmãos cristãos anteriormente mencionados e dos pobres, pois estas são as oferendas dos fiéis, dinheiro da recompensa [pela remissão] dos pecados, patrimônio dos pobres doados ao Senhor pelos propósitos já mencionados.

Porém, se alguém agir de outro modo – que Deus não o permita! -, que tome cuidado para não vir a receber a condenação aplicada a Ananias e Safira; culpável de sacrilégio como foram aqueles que mentiram sobre o preço da propriedade, como lemos na passagem citada anteriormente nos Atos dos Apóstolos: “Um homem chamado Ananias, com Safira, sua esposa, vendeu sua possessão, porém reteve uma parte do preço com o prévio consentimento de sua esposa; trouxe uma parte e a depositou aos pés dos apóstolos. Entretanto, Pedro disse a Ananias: ‘Como Satanás te tentou para mentir ao Espírito Santo, retendo parte do preço da terra? Ficando com ela, não era tua? E depois de vendida, não estava à tua disposição? Por que concebeste isto em teu coração? Não mentiste aos homens, mas a Deus’. E ouvindo isto, Ananias caiu por terra e expirou. E um grande temor veio sobre todos aqueles que ouviram estas coisas. Logo alguns jovens prepararam o seu corpo e o levaram para fora; e o enterraram. Aproximadamente três horas depois, sua esposa entrou sem saber o que havia acontecido. Pedro lhe perguntou: ‘Dize-me: vendestes vós o campo por tal valor?’. Disse ela: ‘Sim, pelo valor tal’. Então Pedro lhe disse: ‘Como combinastes para tentar o Espírito de Deus? Vêde: os pés daqueles que enterraram o teu marido estão chegando à porta e levarão também a ti’. Nesse mesmo instante, ela caiu aos seus pés e morreu. E os jovens entraram, a encontraram morta e, levando-a, a enterraram ao lado do seu marido. E um grande temor sobreveio a toda a Igreja e a todos que ouviram estas coisas” [At. 5,1-11].

Irmãos: devemos guardar cuidadosamente estas coisas; devemos temê-las grandemente, pois a propriedade da Igreja não é propriedade pessoal, mas propriedade comum, propriedade oferecida a Deus; deve, pois, ser distribuída com o mais profundo espírito de temor, em espírito de fidelidade, sem outro motivo que os acima mencionados, para que não incorra em culpa de sacrilégio quem as desviam das mãos para as quais foram consignadas, a não ser que mereça a pena de morte de Ananias e Safira; a não ser que – o que é ainda pior – deva se tornar anátema (vem, Senhor Jesus!); a não ser que, ainda que seu corpo não caia morto como o de Ananias e Safira, sua alma, que é mais valiosa que o corpo, caia morta e seja separada da companhia dos fiéis, sendo atirada nas profundezas do inferno.

Portanto, todos devem prestar atenção a este problema e velar com fidelidade, evitando a desonra de tal usurpação, a não ser que as possessões dedicadas aos usos das coisas sagradas e divinas sejam corrompidas por qualquer grupo que as invada. E se alguém fizer assim, então, após a severa vingança que corresponde a esse crime, o rigor da justiça que deve ser empreendido contra tal sacrílego será o da condenação à infâmia perpétua: será preso ou exilado por toda a sua vida, pois, segundo o Apóstolo [1Cor. 5,5], devemos entregar tal homem a Satã, e deixar que seu espírito seja salvo no dia do Senhor.

III. No que se refere à tentativa de proibir à Igreja o direito de manter propriedades

Assim, pelo crescimento e modo de vida já mencionados, as igrejas dirigidas pelos bispos têm crescido com a ajuda do Senhor e a maior parte delas possue, agora, propriedades; entre elas, não há um só homem que, escolhendo a vida em comum, seja mantido na pobreza, sem que receba todo o necessário do bispo e de seus ministros. Logo, se alguém no presente ou no futuro se levantar contra isto e tentar desviar estas propriedades, deixai que seja afligido pelo Juízo já citado.

IV. As Sés episcopais

Adicionalmente, a respeito do fato de que nas igrejas dos bispos se encontram assentos elevados e preparados como tronos, por meio dos quais se mostra o poder do exame e do juízo, e a autoridade para ligar e desligar, eis que tudo isto foi deixado pelo Senhor, pois o próprio Senhor diz no Evangelho: “Qualquer coisa que ligares na terra, será ligada no céu. E qualquer coisa que desligares na terra, será desligada no céu” [Mt. 18,18]. E, em outro lugar: “Recebam o Espírito Santo. A todo aquele que perdoardes os pecados, estes lhe serão perdoados; e a todo aquele que os reterdes, estes lhe serão retidos” [Jo. 20,22-23].

V. Ninguém deve relacionar-se com aqueles com quem o bispo não se relaciona, ou receber aqueles por ele excomungados

Estas coisas as temos colocado diante de vocês, amados, para que entendam o poder dos seus bispos, para que reverenciem a Deus neles e os amem como as suas próprias almas; para que não se relacionem com aqueles com quem eles não se relacionam, nem recebam aqueles que foram excomungados por eles. Pois o juízo de um bispo deve ser muito respeitado, ainda que ele possa julgar alguém injustamente, não obstante seu dever de cuidar-se com maior zelo.

VI. O compromisso assumido no Batismo e os se entregaram à vida em comum

Exortando a todos vocês, também admoestamos a todos aqueles que abraçaram a fé em Cristo, tomando de Cristo o nome de cristãos: não tenham nada de vão no cristianismo de vocês, mas mantenham irremovível o compromisso que assumiram no Batismo, de tal modo que possam ser encontrados sem reprovação, sempre dignos da Sua presença. E se qualquer de vocês assumiu a vida que possui todas as coisas em comum, assumindo o voto de não possuir qualquer propriedade pessoal, cuide-se para não fazer vã a sua promessa, mantendo com fidelidade este compromisso celebrado com o Senhor, de modo que possa merecer para si mesmo não a condenação, mas a recompensa, porque é melhor para um homem não assumir um voto do que assumi-lo e não o cumprir.

Aqueles que fizeram um voto ou tomaram para si a fé e não guardaram o seu voto ou permaneceram fazendo coisas perversas em suas vidas serão castigados com maior severidade que aqueles que passaram suas vidas sem um voto ou morreram sem fé, porém não sem realizar boas obras. Para esta finalidade, recebemos de presente da natureza uma inteligência racional, além da renovação do segundo nascimento, para que, segundo o Apóstolo, saibamos discernir bem as coisas do alto e as coisas da terra [Col. 3,2], pois a sabedoria deste mundo necessita de Deus [1Cor. 3,19].

Ora, amadíssimos, para o que nos leva a sabedoria deste mundo senão para buscar as coisas más, amar as coisas perecíveis, abandonar as coisas saudáveis e estimar como sem valor as coisas definitivas? Recomenda o amor ao dinheiro, do qual se diz: “O amor ao dinheiro é a raiz de todo o mal” [1Tim. 6,10]; e é isto que contém este mal de maneira especial, pois ainda que imponha o transitório, esconde da nossa vista o eterno; e ainda que saia em busca de coisas externas, não observa as coisas interiores; ainda que busque coisas estranhas, este é um mal que se faz estranho para consigo mesmo daquele que o faz.

Observe: o que impulsiona ao homem a sabedoria deste mundo? A viver em prazeres, quando está dito: “uma viúva que vive em prazer, está morta ainda que viva” [1Tim. 5,6]. Impulsiona o homem a alimentar a carne com os mais suaves deleites, com pecados, vícios e paixões, a pressionar a alma com imoderação na comida e no vinho, para reprimir a vida do espírito e pôr nas mãos do inimigo a espada que será usada contra si mesmo.

Observe: qual é o conselho que a sabedoria deste mundo oferece? Que aqueles que são bons deveriam, ao contrário, optar pelo mal; que, por um erro de mente, deveriam ser zelosos sendo pecadores; que não deveriam refletir sobre aquela terrível voz de Deus, “quando o mau for queimado como a erva” [Sal. 92,7].

VII. A imposição das mãos do bispo

Todos os fiéis devem receber o Espírito Santo após o batismo pela imposição das mãos dos bispos, de modo que possam ser chamados plenamente cristãos, já que quando o Espírito Santo é derramado sobre eles, o coração crente é preenchido para a prudência e a firmeza.

Recebemos o Espírito Santo para podermos ser feitos espirituais, pois o homem natural não recebe as coisas do Espírito de Deus [1Cor. 2,14]. Recebemos o Espírito Santo para podermos ser sábios e discernirmos entre o bem e o mal, para amar o justo e detestar o injusto, assim como para resistir à malícia e ao orgulho, resistindo ao luxo e diversos atrativos, bem como aos desejos impuros e indignos. Recebemos o Espírito Santo para que, acesos com o amor à vida e o ardor da glória, possamos ser capazes de elevar nossa mente das coisas terrenas para as coisas celestiais e divinas.

– Dado nas nonas de setembro, isto é, no quinto dia do mesmo mês, durante o consulado dos ilustríssimos Antonino e Alexandro.

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