Deus, onde te escondes?

Deus, onde te escondes? Perguntou o pobre oleiro no silêncio da manhã. Tudo que obteve em resposta, foi o próprio som de sua respiração. Ofegante, ainda revoltado pelos últimos acontecimentos ( havia perdido a venda de 50.000 telhas, porque seu preço estava muito acima do dos concorrentes), procurou não pensar em mais nada e resolveu ir até a beira do riacho pescar. Da pescaria o saldo foram uma lata velha e enferrujada, que havia enganchado em seu anzol e incontáveis picadas de insetos, que não deixaram com que ele dormisse sossegado seu sono de toda tarde.
 
Não era homem dado à conversas, e após rolar na cama por mais de uma hora, resolveu sair de casa e voltar para o trabalho, ignorando completamente os chamados da esposa, que se encontrava na sala, como se ela fosse transparente ou algo assim.
 
João de deus era seu nome, isso mesmo, deus com letra minúscula, devido a um erro cometido pelo escrivão do cartório . João seguia pela vida, tendo de dar explicações, cada vez que tinha de apresentar seus documentos, tendo mesmo criado uma quadrinha, que recitava a cada novo questionamento sobre a grafia de seu nome.
 
João de Deus eu nasci,
João de deus me tornei,
Faço telhas, sou oleiro,
Deus perdoe o português.
 
Ia vivendo um dia de cada vez, sem pensar no de amanhã. Para ele fazer uma reserva de dinheiro, era coisa de pobre, como se pobre pudesse fazer reserva. Era feliz do seu jeito, nos finais de semana costumava tomar com os amigos, num bar de quinta categoria, o que havia de mais forte, cachaça pura , sim pura porque "homem que é homem não toma caipirinha", isso é bebida de mulher, falava alto, para quem pudesse ouvir. Depois da bebida virava artista, cantava fados, herança de sua avó viúva, que não tendo mais com o que se ocupar, fazio o neto decorar, as letras de velhas canções portuguêsas.
 
Tudo ia acontecendo na vida de João de deus, sempre igual, o bilhete da loteria que semanalmente comprava, invariavelmente ia parar no lixo, nunca adquirira um que fosse dos premiados. Para não dizer que não tinha sorte, havia ganho numa rifa beneficiente, da paróquia que sua mulher frequentava, um par de pesados castiçais, que por falta de vela ou de poesia, serviam para segurar as portas dá velha olaria, que havia herdado do pai.
 
"Viestes do pó e ao pó retornarás", havia ouvido certa vez, do pároco durante a homília, achou bonito, e como trabalhava com barro, mandou fazer uma placa, que colocou na porta descascada do depósito de material da olaria. "Viestes do pó e ao pó retornarás", as palavras solenes descombinando com o aspecto de fracasso ao redor.
 
Certo dia ( era quinta-feira, de uma semana qualquer), nosso anti-herói acordou e percebeu que havia passado a noite num banco de jardim da praça em frente à Igrejinha local. Em suas mãos a placa, que na noite anterior ,havia arrancado da porta para tentar negociá-la com o dono do bar, por uma garrafa de pinga. Troca essa recusada pelo homem, que por ser supersticioso, achou que aquela placa iria lhe trazer azar.
 
 Os sinos começavam a tocar, chamando os fiéis para a missa, e foi então que João de deus, pela primeira vez em toda a sua vida, resolveu adentrar por livre e expontânea vontade, na Casa do Pai. Placa na mão, dirigiu-se ainda cambaleante ao altar e a depositou no chão, diante dos olhos estupefatos dos que alí se encontravam, para a celebração matinal. Olhou firme para o sacrário, fez o sinal da cruz e saíu da Igreja pela porta lateral.
 
Contam os mais velhos, que a velha placa que se encontra na estante envidraçada da sacristia, é uma espécie de ex-voto, que está conservado no mesmo local fazem trinta anos. De João de Deus a cidade nunca mais ouviu falar, mas está registrado, nos livros do cartório da capital, um processo de retificação de nome de um tal João de Deus, que vindo do interior, fez fortuna como fabricante de placas, homem piedoso, de conduta irreprensível, caridoso e que tinha por hábito, ao entrar na Catedral, para participar da missa diária, começar suas orações com uma frase silenciosa, "Deus, eu te encontrei!".
 
Rio de Janeiro, 20 de novembro de 2003

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