Negritude e Liturgia

1. 2. Liturgia: Expressão Comunitária da Fé
A Liturgia é o termômetro da vivência cristã.
Sem cânticos a Deus, sem danças, sem oração, e celebrações, não existe vida cristã. Há vinte anos atrás, o documento conciliar “Sacrossanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia, insistia que “a Liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força” (SC 10). Puebla retoma a questão e considera a Liturgia enquanto expressão da vivência de fé do povo, momento privilegiado da comunhão e participação para uma evangelização que conduz a autêntica e integral libertação cristã.
As Celebrações Litúrgicas evidenciam a vida da Comunidade e seu vigor. Na linguagem Litúrgica feita de gestos, de compenetração, de sinais, de cânticos, de símbolos, são expressas as realizações, os anseios e buscas comunitárias.
A Liturgia é a expressão de uma comunidade de pessoas que vivem situações concretas. E, que, portanto transforma em linguagem Litúrgica seu sofrimento, alegria e esperança.

3. Liturgia e Expressões Culturais

A Liturgia assume o espaço cultural e dessa maneira procura encarnar a fé, dando-lhe características próprias. Uma Liturgia é tanto mais rica na medida em que sabe conjugar e expressar os elementos da fé com vários matizes culturais.
Hoje os grupos e comunidades eclesiais de base procuram resgatar os elementos culturais na Liturgia. Alias, em consonância com a Constituição Conciliar que insiste para que al Liturgia possa “cultivar e desenvolver as conquistas e os dotes de espírito das várias regiões e povos, fugindo as formas rígidas e únicas” (SC 37).
Em resumo a Liturgia é aquela forma que cada povo com seus costumes e culturas engendram para dizer o seu “muito obrigado” a Deus.
Com a preocupação proselitista de levar o cristianismo a novas regiões de conquista, ao “novo mundo”, por exemplo, nem sempre houve por parte dos pregadores o justo discernimento entre fé e liturgia enquanto expressão da fé e cultura. Muitas vezes a pretensa ortodoxia litúrgica achatou a cultura, suprimindo a originalidade e a espontaneidade cultural.

4. A Marginalização da Cultura Negra na Liturgia
 
Se houve uma desatenção geral por parte da Igreja em relação às expressões culturais, em particular isto ocorreu com a liturgia católica em relação à cultura de origem afro.
A população negra no Brasil sempre foi marcante. No final do século passado, por exemplo, depois de várias ações oficiais objetivando o “embranquecimento”, os negros somavam mais de 45% da população, excetuando os mulatos. Hoje a comunidade negra atinge mais de 1/3 da população brasileira.
Em termos religiosos, o contingente negro engloba três grandes grupos de participação. Há um grande número de negros que pratica o Candomblé como expressão de fé, e não participa de nenhuma outra prática religiosa. Ao lado deste, vem o grupo sincretista, que reúne aqueles que praticam um culto de origem afro e as práticas devocionais católicas. O terceiro grupo, não sem dúvida por ordem numérica, é composto de negros católicos que não conhecem nenhuma outra prática religiosa além do catolicismo.

Não obstante o elevado número da população negra, a liturgia oficial da Igreja nunca tomou isto em consideração.
As liturgias das Igrejas Cristãs no Brasil são brancas e o negro para ter acesso a elas tem que sofrer um processo de branqueamento.
No catolicismo de modo particular, devido o seu maior tempo de relacionamento com a população negra no Brasil, a liturgia foi uma das formas de exclusão do elemento negro. Seja através da negação a sua participação de forma ostensiva, não permitindo, por exemplo, o acesso do negro às liturgias católicas para não causar constrangimento aos brancos, seja através do impedimento das formas de expressão litúrgicas. O fiel negro não podia se reconhecer numa prática litúrgica que não assimilava nada a sua cultura. A liturgia verticalista e excessivamente racionalizada de matriz européia não lhe dizia respeito. Sobretudo, não dizia respeito as suas dores, ao seu cativeiro, as suas lutas e resistências. Rezar como branco opressor, usando a sua própria expressão, era implorar ao sagrado a própria condenação. A liturgia foi então uma forma de discriminação e de domesticação do negro.

Os poucos Santos negros foram preteridos e a própria liturgia reforçava os preconceitos acentuando que a “graça é branca” e o “pecado é negro”. O culto Marial a Nossa Senhora Aparecida, orientado por Congregações religiosas com o objetivo de controlar as devoções populares, foi descaracterizado perdendo a sua ligação histórica e conseqüentemente a sua denúncia profética que partia da situação do negro. Neste sentido a liturgia não fugiu ao processo global empreendido pelo projeto de colonização com a aquiescência da cristandade. Daí o motivo pelo qual o sistema colonial reprimiu de forma constante e sistemática toda forma de expressão cultural negra. Reprimiu a dança, impingindo a população que a dança do negro é selvagem; que seu corpo é feio; que sua cor e costumes são expressão de maldição e barbarismo; que seus instrumentos são profanos e grosseiros; seus ritos diabólicos e sua religião macabra. Ao negro não é permitido praticar seus cultos como o branco, em praça publica ou em templos centrais urbanos. Por isso o negro se vê obrigado a pratica-los às escondidas, à noite, em lugares improvisados.

Não obstante este insensível comportamento cultural por parte da liturgia oficial e da pastoral, é grande o número de negros católicos que amam a Igreja, acompanham suas práticas e seguem fielmente os seus ensinamentos. Recordemos por exemplo às famílias negras católicas de Minas Gerais, do Maranhão, do Nordeste, do Sul do país, tratando com tanto zelo as práticas religiosas, batizando seus filhos e ensinado-lhes escrupulosamente os preceitos. O encontro do cristianismo com o negro foi frustrante, e por vezes até dramático, mas o negro viu sempre por trás da estrutura de repressão cultural a mensagem libertadora que este carregava por sob as expressas camadas de dominação.[

5. A Recuperação da Negritude na Liturgia

Como já é comum constatar, o Concílio Vaticano II continuando depois em Medellín e Puebla, marcou grandes avanços na pastoral da Igreja e na maneira de dialogar com a realidade. A cultura e a liturgia anteriormente vistas de maneira elitista, passam a ser concebidas como ação transformadora a partir do povo e sua maneira própria de exprimir a fé. Trata-se de uma nova visão da Igreja, uma nova eclesiologia, a Igreja “Povo de Deus” (cf. LG 9). E o povo de Deus nas CEB’s, nos grupos de base, nas comunidades que foram proliferando pelas periferias e pelo interior do país, foram reinventado a liturgia e deste modo ajudando a Igreja como um todo a “encontrar a posição real da liturgia na sua missão evangelizadora” (Cf. Puebla, 896).
A eclesiologia do Pós-Vaticano II dinamiza no Brasil e na América Latina por uma nova teologia está ajudando a Igreja a superar o seu passado de conivência com as dominações, particularmente relacionadas ao negro. Hoje pouco a pouco as Igrejas começam a se sensibilizar pela causa dos negros que como afirma Puebla, “vivendo segregados e em situações desumanas, são os mais pobres dentre os pobres” (Puebla 34).

Os negros começam a se organizar em grupos, comunidades sob a denominação de diversos grupos. Também na Igreja, os “Agentes de Pastoral Negros” começam a se encontrar para aprofundar sua realidade, dando maior consistência à unidade e a luta de superação do racismo às vezes velado, mas quase sempre declarado que perpassa os vários segmentos da sociedade brasileira. Os grupos e Encontros de Agentes de Pastoral Negros (Padres, Religiosas, Pastores, Seminaristas, Leigos e Leigas engajados) vão se multiplicando pelas Paróquias e Comunidades de Base.
Trata-se de uma caminhada centrada na fé que emerge do Evangelho e que deixa claro que toda sorte de dominação: sexual, racial, étnica, social, são entrevas a realização do Reino de Deus. A “evangelização no presente e no futuro da América Latina” tem que passar pela superação do racismo sistemático que afeta nossa sociedade. Conviver com tal situação é ser conivente como no passado com posturas antievangélicas. É uma luta assumida com firmeza pelos grupos, mas ao mesmo tempo com muito discernimento, evitando evangelicamente todo e qualquer sentimento revanchista, embora historicamente tenha razões para isso.

Mas ao mesmo tempo em que aprofundam a consciência da negritude, os Agentes de Pastoral Negros vão recuperando as suas origens culturais na liturgia. É efetivamente uma nova maneira de viver e celebrar a fé cristã enquanto negro, assumindo a negritude nas Celebrações e na luta que alimente a resistência cotidiana.
As duas dimensões, litúrgica e ética são inseparáveis na prática dos Agentes Negros. A Liturgia é expressão de libertação e por isso mesmo é santificadora, fazendo parte do conjunto da salvação.
Na verdade a Liturgia se traduz numa experiência de Deus vivida no seio da comunidade. E a presença do seu Espírito, inflama a comunidade de coragem e justiça. E então, os negros levantam a cabeça da submissão secular e unidos percebem que a “libertação está mais próxima”.
 

6. Características das Celebrações dos Agentes de Pastoral Negros

As Celebrações Litúrgicas dos grupos negros são antes de tudo marcadas pelo sentimento religioso característico da cultura negra. A visão de mundo dos ancestrais africanos era teológica. Aliás, com gêneros literários muito semelhantes ao dos primeiros livros do Antigo Testamento. O afro-brasileiro é por tradição culturais e religiosos. Não existem dois mundos e duas histórias maniqueisticamente separados, um sagrado e outro profano, mas uma percepção de conjunto dos elementos do universo. Seu relacionamento com Deus, não pressupõe uma divindade estática, um “motor imóvel”, mas o Deus que encarna a realidade do povo, sofrendo com eles, lutando junto e que dança com o povo nas suas vitórias. Deus está aqui e participa da vida condenando toda forma de racismo, sinal de morte.
Por isso as Celebrações dos grupos negros são espontâneas, fugindo a rigidez e a simetria burocrática das Celebrações ordinárias. Não são liturgias livrescas onde tudo já está pré-determinado condicionando a celebração a mera representação, mas oral, sem explicações excessivas, uma vez que o que se celebra está tão ligado e centrado na vida que não carece de “comentários explicativos”.

A Liturgia inicial ao som dos atabaques no compasso de dança caracteriza a festa. Na cultura negra os instrumentos musicais, particularmente o atabaque, são instrumentos sagrados. O atabaque está sempre presente na vida do povo, do nascimento à morte. Anuncia as festas, as vitórias e os perigos. Ao som do atabaque a comunidade se torna comunhão.
Ao início da Celebração se revive a memória histórica daqueles que sofreram no próprio corpo o martírio de Cristo. E entre estes está Zumbi, mártir maior da causa negra, assassinado no Quilombo dos Palmares pelo sistema branco opressor em 1695.
No Ato Penitencial, os participantes assumem a Igreja “santa e pecadora” e se colocam como tal em atitude penitencial e evocam todas as Instituições que foram coniventes com o pecado da escravidão. Enfim, cada momento litúrgico da Celebração revive situações concretas de sofrimento por que passa a população negra. Desta maneira, o Culto não se torna uma mera prática devocional, mas memória viva e atualizada do mistério de Cristo. Na Apresentação das Oferendas, são apresentados os instrumentos de tortura de ontem e de hoje que massacraram tantos irmãos negros. E, logicamente, se oferece o vinho e o pão frutos do trabalho. Porém, se oferece com consciência de que esta oferecendo produtos que historicamente foram de fato produzidos pelas mãos e pelo suor dos negros. Embora, quase sempre o branco opressor é que entrava nas igrejas para oferecer garbosamente, algo que não foi produzido por ele, mas expropriado do pobre, do negro.

Agora a oferta é entregue por quem de fato a produziu. Não obstante a consciência da opressão e discriminação presentes, o ambiente e as perspectivas da Celebração são de esperança. Esperança que nasce da fé e das mediações concretas da libertação. Em toda a comunidade é transparente a certeza da realização do Reino, ou seja, do Quilombo Páscoa onde a fraternidade e a justiça serão as normas evangélicas da convivência.
Em síntese, nos ritos, nos cantos, na ligação com a realidade, na espontaneidade, as Celebrações das Comunidades Negras que vão se organizando, procuram resgatar os elementos da cultura negra enriquecendo a Liturgia da Igreja.
São Liturgias fortemente marcadas pela experiência de uma espiritualidade que nasce da vida. E também centrada nas dimensões escatológicas e libertadoras.

Experiência espiritual na medida em que a Liturgia evidencia o Espírito de Deus no seio da Comunidade, e que garante que o povo negro não estará jamais sozinho na luta pela libertação. Deus o acompanha.
Uma experiência escatológica. Sistematicamente explorado e marginalizado, aberta ou veladamente, no passado e no presente, o negro celebra em comunidade um amanhã diferente que já inicia hoje quando os grupos começam a se reunir. Deus lhe dá a certeza de uma nova humanidade que não será mais marcada pelo racismo.
Uma experiência libertadora. Na verdade a Liturgia dos grupos negros é uma experiência comunitária de libertação. Onde o negro aprende a “gostar de ser negro”.
Em nome do amanhã e da confiança na Palavra de Deus que mantém a força histórica dos marginalizados, o presente se transforma em ação.

Profundamente identificada com o Povo de Deus no Egito, a comunidade negra, vítima da diáspora e do cativeiro ainda mais atroz, começa a transpor o “mar vermelho”, ou seja, rompe com o limite do medo, e acredita que o fará a “pé enxuto”. A ligação com as origens no significa que a “terra prometida” esteja no passado, mas no futuro, para além da aridez do deserto de lutas. Mas desde já a Celebração alicerçada na vitória de Cristo, antecipa as alegrias da libertação.

7. O Acolhimento, o Canto e a Memória Histórica na Liturgia

Há ainda três elementos que merecem destaque na Liturgia dos Agentes de Pastoral Negros: o acolhimento, o canto e a memória histórica.
A Celebração é antes de mais nada um encontro. Por isso o ambiente é de acolhida. Celebrando, as pessoas sentem-se acolhidas e a assembléia ao invés de ser uma reunião de estranhos que se tocam formalmente, torna-se um aconchego de irmãos na casa do Pai.
O canto é o elemento de ligação comunitária da experiência de Deus. Os grupos vão compondo os cantos próprios. O cancioneiro litúrgico corrente é desprovido de cantos que atinjam a realidade do negro. As letras das canções refletem a caminhada e falam do sofrimento, da luta e da esperança. Não se canta, porém só com a voz, todo o corpo exprime e fala sua linguagem.
A Liturgia não contempla só a luta do negro hoje. O negro sempre lutou e resistiu a dominação. A Celebração evoca este passado de luta nas “histórias que não foram contadas” e nos textos da Sagrada Escritura. Sempre presente à memória combativa e revolucionaria de Zumbi que a assembléia não casa de cantar: “Hei Zumbi Ganga meu ri você não morreu, você vive em mim…”.
A memória histórica é de capital importância para que o negro possa sentir o seu passado de luta, em vão acobertado pela história oficial dominante. O negro não é descendente de escravos passivos, mas de um povo que foi escravizado e que nunca aceitou esta sujeição.

8. Conclusão

Concluindo diríamos que na verdade a caminhada dos grupos negros nas comunidades eclesiais é uma profunda experiência espiritual. A Liturgia é parte desta caminhada. Ela sintetiza e encoraja a busca. Conquistando espaço na pastora, com Celebrações características, os grupos vão contribuindo não só com a libertação global do negro, mas também com o enegrecimento da Igreja. Uma Liturgia negra meramente instrumental cairia no artificialismo ou em simples expressão folclórica. Uma Liturgia que assuma de fato os elementos culturais negros têm que passar necessariamente pelo enegrecimento da Igreja.

Disponibilizado pela CNBB em Fev/04

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