O Deus desarmado

Os terríveis acontecimentos de 11 de setembro de 2002, depois que o mundo se viu mergulhado no horror das agressões cometidas contra Nova York e Washington, com as torres gêmeas do World Trade Center derrubadas, o Pentágono atacado e milhares de vítimas soterradas sob escombros da capital do glamour, do consumo e da estética, constituem certamente uma lembrança que o Ocidente não gostaria de conservar em sua memória.

No entanto, o que se seguiu àquele 11 de setembro e que continua até hoje tampouco é digno de recordação. Após os terríveis estragos provocados pela violência em seu país, vimos as tropas americanas – numa ação que não devia ser mais que policial – semear a retaliação e a vingança do outro lado do mundo, culminando com a cruel e equivocada guerra do Iraque.

A guerra do Iraque foi declarada. E os jornais todos os dias nos estampavam as cruentas fotos de iraquianos chorando a perda de um ou mesmo de todos os membros da família. O país destroçado foi deixado de lado, enquanto as grandes potências preparam novos ataques, buscando fazer crescer cada vez mais seu poderio. A um Iraque destruído e feito só escombros foi enviado pela ONU o embaixador Sergio Vieira de Mello. Um ataque suicida o matou também, somando-o aos milhares de vítimas inocentes que a guerra equivocada e sem sentido do governo Bush fez e continua desejando fazer.

Ao lado disso, a violência urbana permanece, fazendo milhares de vítimas nas grandes cidades de muitos países. No Brasil, mata-se um Vietnã por ano e o recente filme de Michael Moore Tiros em Columbine pôs a nu o verdadeiro rosto da sociedade americana, retratada como uma nação que, tomada pelo medo, arma-se até os dentes, defendendo-se do vizinho e enxergando inimigos em toda parte. Até que um dia, as próprias crianças e os adolescentes serão vistos empunhando as armas com as quais conviveram desde crianças e matando colegas e professores. Ou assassinando para transportar drogas aos usuários da classe média, e entrando no círculo vicioso da violência que não tem remissão e do qual só se sai morto.

Nesse contexto, a pergunta que nos instiga, a nós, crentes, é: como falar de Deus quando Este parece estar em guerra contra si mesmo? O falar de Deus, por parte da Igreja e dos homens de boa vontade, hoje, só pode dar-se acompanhado de um agir incessante e incansável de construção da paz. O Novo Testamento mostra que essa obra é, antes de mais nada, de Deus, do ”Deus da paz”, cuja promessa consumada em Jesus Cristo compreende a pacificação do universo e a reconciliação entre todos os povos .

O exemplo daqueles que constroem a paz é colocado pelos Evangelhos em termos de uma bem-aventurança, ou seja, de uma vivência da verdadeira felicidade. As pessoas divididas por uma querela são infelizes. É preciso estender-lhes a mão, ajudá-las a se reconciliarem, a se reconstruírem. Não se trata, portanto, de uma atitude meramente afetiva, essa dos construtores da paz e dos pacíficos; mas é algo ativo, que procura eficazmente o bem do outro e da coletividade. Aqueles que assim constroem a paz, diz o Evangelho, ”serão chamados filhos de Deus”, ou seja, ”eleitos”. Escolhidos para viver uma situação e dar um testemunho cujo protótipo é o próprio Jesus, Filho de Deus e Deus Encarnado.

Enquanto prática concreta da justiça e do direito para com aqueles que estão privados desse bem fundamental para a vida, a ação dos construtores da paz reflete a conduta misericordiosa de Deus em relação aos homens. É por causa disto que a bem-aventurança proclamada no Evangelho atesta que alguém que constrói a paz será chamado filho de Deus. Porque efetivamente dá sua vida e entrega o melhor de si a fim de que a paz possa reinar, restaurando as relações rompidas e sanando as feridas geradas pela violência.

Trata-se de todo o contrário da concepção de poder soberano que permitiu durante longo tempo aos reis, imperadores e ditadores de toda espécie se autoproclamarem filhos de Deus, assegurando a paz a seus súditos.

Mais uma vez, o Deus de nossa fé indica o verdadeiro caminho para o fim da violência. Não é certamente o do combate brutal, fazendo-a crescer em lugar de decrescer, com represálias e retaliações. Muito mais Deus vem ao encontro do ser humano sem proteção nem armas, oferecendo amorosamente sua pessoa e propondo uma relação de aliança. É de se desejar que depois de tantas calamidades, possamos enfim compreender que o Deus dos Exércitos é um Deus desarmado.

 

Disponibilizado no Amai-vos

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