BIOSEGURANÇA: “ESCOLHE O CAMINHO DA VIDA”

Encarte “Conjuntura Social e Documentação Eclesial” – Nº 718


Praticamente não se passa um dia sem que seja noticiada uma nova descoberta no campo da biotecnologia. Essas descobertas ora dizem respeito à maior e melhor produtividade; ora à cura de certas doenças genéticas; ora à possibilidade de se combinar seres de espécies diferentes; ora ao que se denomina de reprodução humana assistida; ora à própria clonagem humana, seja numa linha terapêutica, seja numa linha reprodutiva. Todas essas notícias são veiculadas com grande sensacionalismo, e por isso mesmo devem ser examinadas com serenidade e senso crítico amadurecido. Para tanto convém se colocar ao menos três perguntas fundamentais: 1) O que está acontecendo? 2) Onde encontrar subsídios para nos posicionarmos adequadamente? 3) O que podemos fazer?

1) O que está acontecendo?
As freqüentes notícias sobre descobertas e atuações no campo da biotecnologia vêm confirmar que vivemos num período inédito da história humana: dispomos hoje de ciência e tecnologias apropriadas não apenas para conhecer melhor as múltiplas formas de vida, mas também para interferir nos seus mecanismos mais profundos. Depois de os seres humanos haverem desvendado os mistérios da energia atômica, os mistérios da lua e de outros planetas, agora estão rapidamente desvendando os mistérios da vida biológica. Mais do que isto: não apenas estão desvendando, mas até alterando o código genético de muitos dos seres vivos. Com isso se quer conseguir o que se julga ser um aprimoramento, seja da natureza em geral, seja dos próprios seres humanos. No caso dos seres humanos a grande motivação apresentada são as doenças de cunho genético, várias delas de caráter degenerativo, tais como a síndrome de Down ( mongolismo), mal de Parkinson, mal de Alzheimer e outras.

Tudo isso provoca debates acalorados, como os que vem se desenrolando no nosso Congresso Nacional em torno dos produtos transgênicos, e de modo mais amplo em torno da lei de biosegurança. Os debates são positivos, uma vez que ajudam a perceber que se está colocando em questão não apenas uma lei, mas o que ela pode representar, em termos dispositivos que conduzem à vida ou dispositivos que conduzem à morte de toda a criação. Em meio aos debates, não poucas vezes a Igreja católica e outras expressões religiosas são acusadas de estarem entravando a marcha do progresso. Segundo esses críticos, ao combater os transgênicos, os representantes das religiões estariam impedindo que se acabe com a fome; ao combater certos procedimentos de laboratório, que implicam na manipulação e até na morte de embriões, estariam impedindo a cura de doenças genéticas. Tudo isso leva muitos a se sentirem inseguros quanto à posição a ser tomada. Uns, se deixam arrastar por um entusiasmo muito grande, diante da perspectiva de uma vida melhor e mais longa para si e seus descendentes; outros estão assustados, pois nunca na história os seres humanos detiveram em suas mãos tamanho poder.

2) Onde encontrar subsídios?
Quase todas as igrejas e religiões existentes em nosso meio se fundamentam nas coordenadas que brotam de duas fontes: as Escrituras e a experiência-sabedoria consignada numa longa trajetória de séculos e até milênios. É também baseada nesta dupla fonte que a Igreja católica, juntamente com outras igrejas cristãs, vem participando ativamente dos debates. A Palavra de Deus vem definida como palavra de vida. Assim, logo no início do Evangelho de São João lemos que “ no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus… Todas as coisas foram feitas por intermédio dele e sem ele nada se fez de tudo o que foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz da humanidade. Essa mesma Palavra de Deus nos apresenta, com muita clareza o caminho para bem viver: é o caminho sinalizado pelas dez Palavras, também conhecidas como os dez mandamentos. Cristo mostrou que, na realidade, essas dez Palavras se resumem numa só, que é o Amor: amar a Deus e ao próximo resume toda a Lei e os Profetas. Com isso, encontramos uma certeza: o sonho de todos de terem uma vida de melhor qualidade só se torna possível na medida em que as relações humanas, tanto ao nível interpessoal, quanto social, forem pautadas por um autêntico amor a Deus e ao próximo.

Mas as igrejas cristãs e as demais religiões com maior presença em nosso meio, contam igualmente com um acervo de experiência que foram adquirindo ao longo dos séculos. Não é de hoje que a humanidade busca viver mais e com melhor qualidade de vida. De fato essas aspirações são constantes na história. A experiência nos oferece várias certezas: a primeira, que a felicidade é um desejo que o próprio Deus implantou no coração humano; segundo, que as ciências e as tecnologias, na medida em que se colocam verdadeiramente ao serviço de todos, podem contribuir em muito para reduzir os sofrimentos e aumentar a qualidade de vida; terceiro, que devemos desconfiar de soluções fáceis para problemas difíceis. Como nos assegura Jesus Cristo, o caminho que leva à felicidade é um caminho estreito e cheio de renúncias.

Por aí se percebe que não se pode confundir felicidade com facilidade. A felicidade tem que ser construída com a ajuda de Deus e a colaboração de todos: ela não cai pronta do céu, nem é automaticamente legada pelo nosso código genético. Felicidade e desgraça resultam da combinação de muitos fatores. Sobretudo quando se trata de saúde, fica sempre mais evidenciado que ela passa muito mais por sadias relações humanas de cunho religioso e político, do que pela genética, por mais importante que essa possa ser. Se esse é o caminho, segue-se uma pergunta espontânea: mas então, o que podemos fazer? Vamos deixar que grupos econômicos, ou cientistas e políticos decidam por nós, sem nos consultar?

3) O que podemos fazer?
Há alguns anos atrás o Papa João Paulo II escreveu uma importante carta Encíclica, na qual fazia ver que hoje, mais do que nunca, se trava uma luta entre a cultura da vida e a cultura da morte. Esta carta leva o expressivo título: “ O Evangelho da Vida”. Evangelho significa “ boa notícia”. Nós devemos ser portadores de “ boa notícia”, alegrando-nos com as muitas conquistas de hoje, inclusive no campo da biotecnologia. Ao mesmo tempo devemos saber detectar certas loucuras que se estão dizendo e fazendo em nome do progresso. Saber discernir pressupõe, antes de mais nada, o desenvolvimento de uma consciência crítica. “ Sem consciência, a ciência pode conduzir à morte”: é nos diz outro importante documento da Igreja Católica, chamado “ o Dom da vida”.

A consciência crítica, sobretudo quando alimentada pela luz do Evangelho, ajuda a perceber que por trás da batalha dos transgênicos se ocultam hábeis manipulações por parte de empresas nacionais e transnacionais, que não se importam tanto com a qualidade de vida, quanto com os lucros fáceis. Da mesma forma, a maneira como certos setores das áreas biomédicas se referem à produção de embriões e à clonagem humana, ainda que sob a capa do piedoso, mas equívoco adjetivo “ terapêutico”, nos dá a certeza de que para melhorar a vida de uns, não se pode tirar a vida de outros, ainda que seja uma vida incipiente. A descoberta das chamadas “ células tronco” , uma vez mais revelam a sabedoria do Criador, que fez bem todas as coisas, e que colocou à disposição dos seres humanos recursos para esses poderem enfrentar os sofrimentos fisicos em sua raíz. Não é preciso “fazer embriões”, nem manipular embriões, para depois descartá-los: as células tronco se encontram também no cordão umbilical, na medula da coluna vertebral, e um pouco por todo o corpo. Claro que esses procedimentos são mais lentos e mais trabalhosos. E naturalmente isso não interessa aos donos da biotecnologia, que não são cientistas, mas empresários.

Diante deste quadro fica evidente que ninguém mais pode ficar de braços cruzados num momento tão decisivo para a humanidade. É preciso que se desenvolvam verdadeiras estratégias, seja de cunho pessoal, seja de cunho comunitário, seja de cunho social. Entre as de cunho pessoal, merecem ressalto: o cultivo do espírito de reverência diante dos mistérios da vida; a desconfiança diante das promessas de milagres fáceis; a humildade diante da grandeza de Deus e da sua obra criadora. Entre as estratégias comunitárias, importa adquirir uma visão de conjunto da realidade, vendo as implicações políticas e sociais do que se passa na biotecnologia; aprender a conviver com o diferente, pois não é produzindo seres geneticamente iguais que acabarão os conflitos no mundo: esses só acabam na medida em que cresce a capacidade de aceitar e amar os que são diferentes de nós; não deixar-se levar pelas emoções, que ora provocam ondas de entusiasmo ingênuo, ora de pessimismo derrotista. Entre as posturas sociais vão emergir a necessidade de saber acolher o que é novo, mas sem perder a sabedoria dos antigos; desconfiar daquilo que é votado e colocado em prática com muita rapidez, sem a devida cautela que requerem essas intervenções no código genético; bater-se para que os eventuais benefícios não se destinem apenas a alguns, mas que sejam distribuídos para todos. Mais do que da genética devemos esperar o retorno de políticas públicas e sociais adequadas no campo da saúde.

Conclusão: sem dúvida vivemos um dos momentos mais fascinantes da história humana, quando não apenas passamos a conhecer em maior profundidade os mecanismos da vida, mas também somos capazes de intervir sobre eles. Ciência é técnica podem ser nossas aliadas, como também podem se transformar em inimigas da sociedade. Basta lembrar o que aconteceu quando, em vez de energia pacífica, se transformou a energia atômica em bombas. Daí a importância de todos saberem se posicionar e participar responsavelmente das decisões.

Por fim, convém lembrar dois personagens que marcaram para sempre a humanidade. Um deles é Moisés, que, ao se despedir do seu povo mostrou haver dois caminhos: o da vida e o da morte. Sua recomendação foi esta: escolham o caminho da vida, amando o Senhor e escutando a sua voz ( Dt. 30,20). Ademais, animou Josué, seu sucessor, com estas palavras: “ sê forte e corajoso, pois… o Senhor marchará à tua frente, estará contigo e não te deixará nem te abandonará” ( Dt. 31,7). O segundo personagem é naturalmente Jesus Cristo. Ele se apresenta como sendo “o caminho, a verdade e a vida”. Ele nos garante que veio para que todos tenham vida, e a tenham em abundância.

Dr. Frei Antônio Moser
Teólogo, franciscano
 
Disponibilizado pela CNBB em Março de 2004

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