Aprendendo com PIO XII – Todo o cristão deve dizer “Roma mihi patria”
RADIOMENSAGEM DO SANTO PADRE PIO XII
NON MAI FORSE
SOBRE O ANO SANTO DE DEUS
24 de dezembro de 1949
Ao mundo todo
Expectativa dos povos
1. Nunca talvez como nesta vigília que abre o fausto acontecimento do novo ano jubilar, o nosso coração de pai e de pastor vos sentiu tão estreita e intimamente junto de si, queridos filhos e filhas do universo. Parece-nos ver e ouvir – e o nosso coração não nos engana – o palpitar de milhões e milhões de féis em uníssono conosco, qual coro imenso de férvidas ações de graças, de vivos desejos, de humildes invocações ao Pai, que doa todo o bem, ao Filho, que expia toda a culpa, ao Espírito Santo, que dispensa toda a graça.
2. Movidos de profundo desejo de libertação espiritual, atraídos pela fascinação dos bens celestes, esquecidos por algum tempo das agruras da terra, dirigis-vos a nós e como que repetis, mas em bom sentido e com reta intenção, o pedido já outrora feito ao Redentor (Mc 8,11-12; Lc 11,16): “Dai-nos um prodígio do céu”.
3. Pois bem, “hoje sabereis que o Senhor virá e amanhã vereis a sua glória”; o prodígio que esperais ser-vos-á hoje anunciado; o sinal, melhor, o meio de remissão e de santificação amanhã mesmo vos será dado, no momento em que, por nossas mãos, a mística porta será uma vez mais removida, patenteando a entrada ao maior templo da cristandade, símbolo do Redentor Jesus, que nos foi dado por Maria, para que todos, incorporados nele, encontremos a salvação: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo” (Jo 10,9).
4. Da Igreja inteira de Cristo, que estendeu os seus membros a todas as plagas do mundo, se olha nestes dias para Roma, para esta Sé Apostólica, manancial perene de verdade, de salvação e de bem.
5. Sabemos quantas esperanças fundais sobre este Ano Santo. Em nosso coração há firme confiança de que a Providência divina há de operar nele e por ele as maravilhas de sua misericórdia para com a família humana. Sustém-nos a esperança de que o anjo do Senhor não encontre obstáculos no seu caminho, antes ache aplainadas as vias e abertos os corações por aquela boa vontade que faz inclinar o céu para a terra.
6. Nós mesmo, a quem a Providência divina reservou o privilégio de anunciá-lo e concedê-lo ao mundo inteiro, sentimos o presságio da sua importância para o próximo meio século.
7. Parece-nos que o Ano Santo de 1950 há de ser decisivo sobretudo para a auspiciada renovação religiosa do mundo moderno, e portador da solução da crise espiritual que angustia os espíritos do nosso tempo. A desejada harmonia dos valores celestes e terrenos, divinos e humanos, ofício e dever da nossa geração, será realizada ou ao menos apressurada, se os fiéis de Cristo mantiverem firmes os propósitos concebidos, prosseguirem com tenacidade nas obras empreendidas, e não se deixarem seduzir por vãs utopias nem desviar por interesses e egoísmos partidaristas ou parcialistas.
8. Decisiva também para o futuro da Igreja, internamente empenhada no esforço de tornar mais sincera e mais difundida entre o povo a santidade dos seus membros, enquanto externamente se esforça por transfundir e alargar o seu espírito de justiça e de amor às próprias instituições civis.
A abertura da Porta Santa
9. Animados desses sentimentos e desses desejos, penetrados da dignidade de uma tradição que remonta aos tempos do nosso predecessor Bonifácio VIII, nós amanhã, ao abrirmos com três marteladas a Porta Santa, teremos a consciência de realizar não um ato puramente tradicional, mas um rito simbólico de alto significado e alcance, não só para os cristãos, mas para toda a humanidade.
10. Nós quereríamos que aquela tríplice martelada soasse no fundo dos corações de todos os que têm ouvidos para ouvir (cf. Mt 11,15).
11. Ano Santo, ano de Deus, de Deus,
cuja majestade e grandeza condena o pecado;
de Deus, cuja bondade e misericórdia oferece o perdão e a graça a quem estiver disposto para a receber;
de Deus, que neste Ano Santo quer aproximar-se ainda mais do homem e ficar mais que nunca perto dele.
12. Quantos fazem do pecado uma simples “fraqueza”, e da fraqueza até uma virtude! “Equidem”, escrevia já o pagão Salústio, (1) “nós perdemos o sentido verdadeiro das palavras, pois chamamos liberalidade à distribuição dos bens alheios e fortaleza à audácia nas coisas más”. Transformando artificiosamente o sentido das palavras nas mais importantes questões da vida pública e privada, levamo-las a esconder o que a consciência não quer pôr a claro; e coonestar o que a alma delas condena; a negar o que deveriam lealmente reconhecer.
13. Quantos põem no lugar do verdadeiro Deus os seus ídolos, ou então, embora afirmem a sua crença em Deus e a vontade de servi-lo, fazem dele uma idéia que é produto dos próprios desejos, das próprias tendências e das próprias fraquezas! Deus, na sua imensa grandeza, na sua imaculada santidade, Deus cuja bondade compreende tão bem os corações que ele mesmo formou (cf. Sl 32,15) e cuja benignidade está sempre pronta a vir em seu auxílio, não é retamente conhecido por muitos. E daí tantos cristãos de um cristianismo de pura rotina, distraídos e desleixados, e por outra parte, tantas almas atormentadas e sem esperança, como se o cristianismo não fosse, em si mesmo, “a boa nova”. Falsas idéias de Deus, vãs criações de espíritos demasiado humanos, que o Ano Santo deve dissipar e expulsar dos corações!
O Ano do grande retorno e do grande perdão
14. A espontânea simpatia com que os povos acolheram o anúncio deste Ano Santo confirma a confiança que nós nele temos fundada. Não será uma festa ruidosa, nem um pretexto de piedosas distrações, nem mesmo um vaidoso alarde aparatoso de forças católicas no sentido que o mundo entende quando faz consistir o êxito feliz no consenso momentâneo das multidões. O Ano Santo deve agir mais seriamente e mais a fundo nas almas, deve estimular e promover mais largamente as virtudes privadas e públicas, deve ser e apresentar-se mais íntima e puramente cristão.
15. Deverá corresponder à vontade augusta de Deus, deverá assinalar-se como o ano do grande retorno, ano do grande perdão, ao menos naquela medida que na atualidade tem sido atuada, ao passo que, mesmo no passado recente, era de apostasia e de culpa.
I. ANO DO GRANDE RETORNO
Convite paternal
16. Desde hoje, pois, dirigimos ao mundo inteiro a nossa palavra, para que todos e cada um dos homens, de todas as regiões e de todas as plagas, com a urgência própria da extraordinária hora que passa, realizem o grande retorno desejado. Este nosso convite quer ser, sobretudo, convite de pai que vive e se afadiga, sofre e ora e espera pelo bem e felicidade dos filhos. E todos os homens sobre a terra são nossos filhos, “pelo menos por direito e destinação”, mesmo aqueles que nos abandonaram, que nos ofenderam, que nos fizeram e fazem sofrer.
17. Filhos longínquos, extraviados, desiludidos e amargurados, vós particularmente a quem vozes enganosas e talvez, também, incauta visão das coisas, apagaram no coração o afeto que um dia nutríeis pela santa Igreja, não queirais repelir a oferta de reconciliação que Deus mesmo vos faz por nosso meio e num tempo verdadeiramente aceitável. Estai desde já persuadidos de que são suaves os caminhos do regresso à casa do Pai e pleno de gozo o abraço que vos espera.
Retorno a Deus dos incrédulos: dos ateus…
18. Antes de tudo, oxalá este Ano Santo marque a hora do regresso a Deus para as almas que, por causas várias e múltiplas, perderam de vista e extinguiram no coração a imagem e a lembrança do seu Criador, do qual têm a vida, como todos os seres a existência, em quem está, para eles, o sumo bem.
19. Quer estejam longe por inerte e agnóstica atitude ante o máximo problema da vida; quer se tenham por satisfeitos com uma fictícia visão do universo que nega o necessário e devido posto ao primeiro Princípio espiritual de quanto é ou pode ser, já seja que, não tolerando a sua indestrutível presença, por estulta emulação do seu supremo domínio, lhe movam guerra loucamente, tentando sufocar o testemunho que dele lhes dão todas as criaturas e o próprio coração – esses tais sofrem o espasmo do exílio, o isolamento do universo, o vazio do deserto, a que por si mesmos se condenaram, aceitando o ateísmo. Para eles só há um remédio, o regresso, o retorno – retorno por reflexão e ao bom-senso humano, retorno à investigação serena e profunda da razão das coisas, subindo degrau a degrau a escada da criação, do efeito à causa, até repousar plenamente apaziguada a mente investigadora; retorno, finalmente, à humildade e à docilidade da criatura. Aparecer-lhes-á ante os olhos, e poderão quase tocá-lo no irrefragável testemunho das suas obras, o Deus dos viventes, o nosso Pai, o amor que atormenta enquanto não é possuído.
….e dos pagãos
20. Diz-nos o coração que este Ano Santo verá muitos desses regressos, como também verá multiplicarem-se as conversões dos pagãos à fé cristã em terra das missões. Certamente vos confortará saber que do jubileu de 1925 até hoje, o número dos cristãos naqueles longínquos territórios mais que duplicou. Nalgumas regiões da África, a Igreja visível tornou-se até a orientadora da vida social por intermédio do influxo cristão profundamente exercido sobre os costumes públicos e privados. Mas, com a mais viva dor de nossa alma, não podemos desviar o pensamento dos graves perigos que assoberbam ou já devastaram a religião e as suas instituições em outros países da Europa e da Ásia, como na China martirizada, onde subversões trágicas reduziram florescências de vida a cemitérios de morte.
Retorno dos pecadores a Cristo
21. Que o Ano Santo marque, para as almas aliciadas pela miragem lisonjeira do pecado e que andam longe da casa paterna, a hora do retorno a Jesus Cristo redentor. São crentes e católicos, aos quais desgraçadamente o espírito, tão débil como a carne, levou a ser trânsfugas dos próprios deveres e a esquecerem os verdadeiros tesouros, durante longos anos seguidos, ou em habitual alternativa de deserções e de lábeis encontros. Enganam-se, se julgam possuir uma vida cristã e aceite a Deus, sem que a graça santificante permaneça habitualmente em seus corações.
22. Dos fáceis compromissos entre terra e céu, tempo e eternidade, sentidos e espírito, são arrastados ao perigo de morrer de miséria e de fome, longe daquele Jesus que não reconhece como seus os que querem servir a dois senhores. Para estes chagados de espírito, leprosos, paralíticos, sarmentos arrancados sem seiva de vida, seja o Ano Santo tempo de cura e de restabelecimento. O anjo da piscina probática quer renovar para todos eles o prodígio das águas salutares. Quem recusará este banho de vida?
23. O velho pai da parábola evangélica espera ansioso, no limiar da porta santa, que o filho transviado retorne contrito. Quem quererá obstinar-se no deserto da culpa?
Retorno dos dissidentes à Igreja
24. Oh! se este Ano Santo pudesse também saudar o há séculos esperado grande retorno à única verdadeira Igreja de muitos que crêem em Jesus Cristo, mas que dela por motivos vários se separaram! Com gemidos inenarráveis o Espírito, que está nos corações dos bons, eleva hoje como brado de súplica a mesma prece do Senhor: “Para que sejam um” (Jo 17,11). Com justa apreensão em face da audácia com que se move a frente única do ateísmo militante, o que há longo tempo se perguntava é hoje clamado em alta voz: Por que ainda separações? Por que ainda cismas? Para quando se deixa a união concorde de todas as forças do espírito e do amor?
25. Se outras vezes da Sé Apostólica partiu o convite à unidade, nesta ocasião nós o repetimos mais ardente e paternal, levados como nos sentimos pelos apelos e súplicas de tantos e tantos crentes esparsos por toda a terra, que, após as trágicas e lutuosas vicissitudes sofridas, volvem olhos para esta mesma Sé como para a âncora de salvação do mundo inteiro. Para todos os adoradores de Cristo – sem excluir aqueles que, numa sincera mas vã expectativa, o adoram prometido nas profecias dos profetas e não já vindo – abrimos nós a Porta Santa, e ao mesmo tempo, os braços e o coração daquela paternidade, que por inescrutável desígnio divino nos foi comunicada por Jesus Redentor.
Retorno do mundo aos desígnios de Deus
26. Seja, finalmente, este jubileu o ano do grande retorno da humanidade inteira aos desígnios de Deus.
27. O mundo moderno, da mesma forma que tentou sacudir o suave jugo de Deus, repudiou simultaneamente a ordem por ele estabelecida, e com a mesma soberba do anjo rebelde, no princípio da criação, pretendeu instituir outra a seu arbítrio.
28. Após quase dois séculos de tristes experiências e extravios, todos os que têm ainda mente e coração retos confessam que semelhantes disposições e imposições as quais têm nome, mas não substância de ordem – não deram os resultados prometidos nem corresponderam às naturais aspirações do homem. Eis que essa falência manifestou-se num dúplice campo: no campo social, e no campo das relações internacionais.
No campo social
29. No campo social a alteração dos desígnios de Deus operou-se na própria raiz, deformando a divina imagem do homem. A real fisionomia da criatura, de origem e destino divinos, foi substituída pelo falso retrato do homem autônomo na consciência, legislador de si mesmo sem que ninguém lhe possa exigir responsabilidades, irresponsável ante os seus semelhantes e ante o agregado social, sem outro destino fora da terra, sem outro fim que o gozo dos bens finitos, sem mais normas que a do fato consumado e a da satisfação indisciplinada das suas cúpidas ambições.
30. Daqui brotou, e se consolidou, ao longo de muitos lustros, nas mais desvairadas aplicações da vida pública e privada, aquela ordem excessivamente individualista, caída hoje, quase por toda a parte, em grave crise. Mas nada de melhor, também, trouxeram os sucessivos inovadores. Partindo das mesmas premissas falsas e declinando por outros caminhos, conduziram a conseqüências não menos funestas, até chegarem à total subversão da ordem divina, ao desprezo da dignidade da pessoa humana, à negação das mais sagradas liberdades fundamentais, ao predomínio de uma só classe sobre as outras, à escravização de toda a pessoa e coisa em face do Estado totalitário, à legitimação da violência e ao ateísmo militante.
31. Aos defensores de um e de outro sistema social, ambos distantes e contrários dos desígnios de Deus, chegue persuasivo o apelo a que tornem aos princípios naturais e cristãos que fundamentam a justiça efetiva no respeito das legítimas liberdades. E apague-se assim, com o reconhecimento da igualdade de todos na inviolabilidade dos próprios direitos, a luta inútil que exaspera os ânimos em ódio fraterno.
32. Mas além desses votos que são constante solicitude do nosso múnus apostólico, nós queremos dirigir uma palavra de exortação paterna àqueles que põem toda a sua esperança nas promessas da doutrina e dos chefes que se professam explicitamente materialistas e ateus.
33. Humildes e oprimidos, por mais triste que seja a vossa condição, ficando em vós sempre de pé o direito de reivindicardes o que é justo, e nos outros o dever de vo-lo reconhecerem, recordai que possuís uma alma imortal e um destino transcendente.
34. Não queirais trocar os bens celestes e eternos pelos caducos e temporais, especialmente nesta época em que, por toda parte, homens honestos e próvidas instituições acolheram mais eficientemente o vosso brado de socorro e compreenderam o vosso drama, decididos a guiar-vos pelos caminhos da justiça.
35. A fé e esperança que depositais não raro em homens, tanto mais generosos e persuasivos em prometer, quanto mais certos estão de não poderem obter a rápida solução dos vossos problemas todos, que eles sabem apresentar aos vossos olhos em plena luz – problemas dos quais algum, pela própria limitação da natureza humana, é dificilmente solúvel – essa fé e esperança, dizemos, reservai-a primeiro para as promessas de Deus que não engana.
36. Os legítimos cuidados que vos preocupam para conseguirdes o pão de cada dia e conveniente habitação – indispensáveis para a vossa vida e das vossas famílias -, procurai que não se oponham aos destinos celestes, não vos façam esquecer nem descuidar da alma e dos tesouros imortais que Deus vos confiou nas almas dos vossos filhos, não vos obscureçam a visão nem impeçam de conseguir os bens eternos, que serão a vossa felicidade perpétua e se concretizam no supremo valor para que fomos criados: Deus nossa bem-aventurança. Só uma sociedade iluminada pelos ditames da fé, respeitadora dos direitos de Deus, com a certeza da conta que os chefes responsáveis hão de dar ao Juiz supremo no íntimo da sua consciência e diante dos vivos e dos mortos – só uma sociedade assim saberá reconhecer e interpretar retamente as vossas necessidades e justas aspirações, defender e propugnar os vossos direitos, guiar-vos sabiamente no cumprimento dos vossos deveres, segundo a hierarquia dos valores e a harmonia da convivência doméstica e civil estabelecidas pela natureza.
37. Não esqueçais que, sem Deus, a prosperidade material é, para quem a não possui, uma ferida atormentadora, mas para quem a tem é uma sedução mortal. Sem Deus a cultura intelectual e estética é um rio cortado da nascente e da foz: reduz-se a pântano, enche-se de areia e lodo.
No campo internacional
38. Esperamos, enfim, para este Ano Santo o retorno da sociedade internacional aos desígnios de Deus. Segundo eles, todos os povos na paz e não na guerra, na colaboração e não no isolamento, na justiça e não no egoísmo nacional, são destinados a formar a grande família humana, encaminhada para a perfeição comum, em auxílio mútuo e equitativa distribuição de bens, os quais são tesouro de Deus confiado à guarda dos homens.
39. Queridos filhos, se houve alguma hora ocasião que nos parecesse propícia para exortar os que governam os povos a pensamentos de paz, esta do Ano Santo parece-nos mais que todas oportuna. Ela é e quer significar também um poderoso apelo e, simultaneamente, um contributo à confraternização das gentes.
40. Para esta mãe de povos que é Roma, convergirão inumeráveis grupos de peregrinos, de diversa estirpe, nação, língua, costumes e sentimentos. E dentro destes mesmos muros conviverão, encontrar-se-ão pelas mesmas ruas, descansarão nas mesmas pousadas, participarão nos mesmos ritos, matarão a sede da alma nas mesmas fontes do espírito, gozarão dos mesmos confortos, aqueles que tiveram por encargo semear a morte e aqueles que lhe sofreram os espantosos efeitos, o que invadiu e o que lhes ficou sujeito, o que rodeou os campos de arame farpado e o que neles sofreu dura prisão. Não temos nós, pois, razão de crer que estes milhares e milhares dos nossos devotos filhos e filhas virão a ser a vanguarda fiel na cruzada em favor da paz, e que com a nossa bênção levarão consigo para as suas pátrias o pensamento e a força da paz de Cristo, a fim de lá ganharem novos soldados para tão santa causa?
41. Não permita o Senhor que esta “trégua de Deus”, auspiciosa inspiradora de pacíficos intentos, venha a ser perturbada ou violada por insanos propósitos não só entre as nações, mas entre os diversos partidos de um mesmo país. A mão sacrílega que tal fizesse condenar-se-ia por si mesma aos castigos da justa ira de Deus, e não poderia deixar de atrair sobre si a execração de toda a humanidade.
42. Nós, pois, neste Ano Santo de graças extraordinárias, acalentamos em nós a esperança de um grande retorno: grande pelo número de filhos, para os quais reservamos o mais afetuoso amplexo, grande pelas longínquas paragens de onde alguns deles virão, grande pelas vastas e benéficas repercussões, que necessariamente dele hão de derivar. Que os nossos filhos, que todos os homens de boa vontade, tomem a peito, com carinho, não desiludir as esperanças do Pai comum, que de contínuo ergue os braços ao céu para que a nova efusão de misericórdia divina sobre o mundo vá além de toda a medida.
II. ANO DO GRANDE PERDÃO
Deus amor misericordioso
43. Por meio deste encontro de amor compassivo e benigno, que de Roma se ateará por toda a terra, todo o retorno a Deus, a Cristo Jesus, à Igreja e aos divinos desígnios será selado com o amoroso abraço do Pai das misericórdias, que perdoa toda culpa e toda pena a quem ama. Jesus descobriu-nos a verdadeira face de Deus, figurando-o no pai que acolhe, abraça, perdoa ao filho pródigo no seu contrito e confiante retorno a casa, da qual se tinha loucamente afastado.
44. Se o jubileu para os homens é tempo de extraordinário retorno, para Deus será ocasião de perdão mais amplo e amoroso.
Arrependimento e expiação
45. E quem é que não tem necessidade do perdão de Deus? Todavia o Senhor, se está pronto a perdoar, não dispensa o pecador do arrependimento sincero e da justa expiação.
46. Seja, pois, o Ano Santo, principalmente, ano de arrependimento e de perdão. O arrependimento e a expiação, interiores e voluntários, são condições indispensáveis de qualquer renovação humana, significam paragem no resvaladouro, exprimem o reconhecimento dos próprios pecados, manifestam a seriedade do bom querer.
47. E a expiação voluntária adquire maior valor quando for coletiva e prestada em união com o primeiro expiador das culpas humanas, Jesus Cristo nosso redentor.
48. Expiai, queridos filhos, neste Ano Santo que recorda a grande expiação do Calvário, as vossas culpas e as dos outros. Sepultai todo o passado culpável num sincero arrependimento, persuadidos de que se a presente geração foi tão duramente atingida pelos castigos que ela fabricou por suas próprias mãos, é porque pecou mais conscientemente e mais perversamente.
49. Passam-nos diante dos olhos, em lúgubre desfile, os vultos doloridos dos órfãos, das viúvas, das mães em expectativa de um regresso que, talvez, não se dará, dos perseguidos pela justiça e pela religião, dos prisioneiros, dos prófugos, dos exilados à força, dos encarcerados, dos desempregados, dos oprimidos, dos que sofrem no espírito e na carne, das vítimas de toda a injustiça. Tantas e tantas lágrimas que regam a face da terra, tanto e tanto sangue que a atinge, embora sejam já de si expiação, e em muitos casos não por culpas próprias, exigem, por sua vez, outra expiação, para ser destruído o pecado e sorrir de novo a alegria.
50. Quem quererá alhear-se deste mundo de expiação que tem por cabeça o próprio divino Crucificado e abraça toda a Igreja militante?
Perdão entre os homens
51. Com tão largas promessas da parte de Deus, talvez nunca Ano Santo algum tenha vindo a aconselhar, mais oportunamente, a mansidão, a indulgência e o perdão entre homem e homem.
52. Quando em tempos recentes, tomando como pretexto uma guerra desafortunada ou culpas políticas, se desencadeou uma vaga de represálias, desconhecida até agora na história, ao menos no que respeita ao número de vítimas, sentimos invadir-nos o coração uma acerba dor, não só pela desventura que multiplicava as desventuras e lançava no luto milhares de famílias muitas vezes inocentes, mas também porque, com grande mágoa, víamos ali o trágico testemunho da apostasia do espírito cristão.
53. Quem quer ser sinceramente cristão deve saber perdoar “Servo iníquo… – adverte a parábola evangélica (Mt 18,33), …não devias também tu ter piedade do teu conservo, como eu tive piedade de ti?”
54. A caridade e a misericórdia, quando ocorrem motivos justos, não contrastam com o dever da reta administração da justiça. A intolerância imprudente e o espírito de represália, sim, sobretudo quando a vingança é excitada pelo poder público contra quem, mais que prevaricar, tenha errado, ou quando a pena mesma, merecidamente infligida, se prolongue além de todos os limites razoáveis.
55. Inspire o Senhor sentimentos de reconciliação e de concórdia a quantos têm sobre si as responsabilidades públicas e, sem prejuízo do bem comum, ponha-se fim àqueles resíduos de leis extraordinárias, que não se refiram a delitos comuns merecedores de justa punição. Essas leis de exceção, longos anos após a cessação do conflito armado, só provocam, em tantas famílias e indivíduos, sentimentos de exasperação contra a sociedade em que são constrangidos a sofrer.
Perdão amplo
56. Por isso, nós tornamos a rogar às supremas autoridades dos Estados, especialmente dos cristãos, em nome do próprio Jesus Cristo que precedeu com o exemplo orando pelos mesmos que o matavam – tornamos a rogar, dizemos, queiram exercer generosamente o seu direito de graça, mandando para esse efeito, na ocasião tão solene e propícia do Ano Santo, se concedam, como mitigação da justiça punitiva, as anistias que as leis de todos os países civilizados prevêem.
57. A religião e a piedade, que, como são nossos desejos, inspirarão esses atos de benevolência, longe de enfraquecerem a força da lei ou fazerem diminuir nos cidadãos o respeito por ela, serão pelo contrário mais forte motivo para que os beneficiados com o regresso à almejada liberdade ou com o encurtamento da pena, ressurjam moralmente e reparem, quando for o caso, o passado, com sincera e duradoura emenda, sob o signo da fé.
58. Nós, e justamente conosco tantos corações de parentes aflitos, pedimos este conforto, porque a alegria dos filhos é gáudio do Pai. E desde agora expressamos o nosso público e fervoroso agradecimento aos governantes que, em vária medida, acolheram já favoravelmente o nosso voto, ou nos deram qualquer esperança de realizá-lo.
Convite a Roma “Securus iam carpe viam”
59. Queridos filhos, eis, nas palavras que aí ficam, aberto o nosso coração, na vigília da abertura da porta santa: lede nele as nossas intenções, as nossas esperanças e os nossos desejos.
60. Recolhei nosso convite para a casa paterna; de perto e de longe, de toda a região e continente, de todas as fronteiras e por todas as estradas, transpondo os oceanos e sulcando os céus, vinde a esta Roma, que, sempre maternal, vos abre os braços: “Já podes, ó peregrino, iniciar tua viagem das extremidades ocidentais, sejas lá quem fores, tu que almejas venerar a rocha de Pedro”.(2)
61. Vós, que já por longos anos deixastes o lar doméstico e vos enrijecestes nas asperezas das viagens longas com os exércitos em guerra, com os bandos de prófugos, de emigrantes, dos dizimados, retomai o caminho, mas desta vez com alegria, como legiões pacíficas de orantes e de penitentes em demanda da pátria comum dos cristãos.
“Roma mihi patria”
62. Pois que, sem privilégios de estirpe ou de casta, Roma é pátria de todos, todo o cristão deve dizer “Roma mihi patria”. Aqui se manifesta mais particularmente a sobrenatural providência de Deus sobre as almas. Aqui hauriram os santos as normas e inspirações dos seus heroísmos. Esta terra bendita conheceu os triunfos dos primeiros mártires e foi campo de exercício e ação de invictos confessores. Aqui é a rocha inabalável, na qual ancorareis os vossos anseios: o lugar, o antigo “tropaeum” [monumento] do sepulcro glorioso do príncipe dos apóstolos, que sustém a cátedra viva do vigário de Cristo.
63. No esplendor das basílicas, na pompa das liturgias solenes, nas penumbras dos antigos cemitérios cristãos, ao lado das relíquias insignes dos santos, respirareis auras de santidade, de paz e de universalidade que operarão na vossa vida uma profunda renovação cristã.
64. E vós, diletos filhos de Roma, mais vizinhos nossos e a nós ligados por mais imediato ministério pastoral, que muitas vezes, neste decênio passado nos tendes dado inequívocas provas de devoção filial, não sereis segundos a ninguém em ajustardes os vossos propósitos e proceder aos altos fins do Ano Santo. Toca-vos o exercício de uma caridade particular no acolhimento que fareis aos irmãos que de longe vêm, uma exemplar morigeração de costumes, fervorosa prática dos deveres religiosos.
65. Acolha o onipotente e misericordioso Deus estes nossos votos, e sobre vós que nos escutais, sobre todos os homens de boa vontade, sobre aqueles de quem esperamos o retorno, desça, como penhor das mais amplas misericórdias do céu, a nossa bênção apostólica.
PIO PP. XII
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Notas
(1) Catil. 52. “nos vera vocabula rerum amisimus, quia bona aliena largiri liberalitas, malarum rerum sudacia fortitudo vocatur”.
(2) “Securus iam carpe viam, peregrinos ab oris – occiduis quisquis venerandi culmina Petri – …petis”. Paulo Diácono, Carmina, VIII,19-21: Monum. Germ. hist., Poetae lat. aevi carol., t. l, p. 46.
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