A INCRÍVEL ENCARNAÇÃO ATUAL DO EVANGELHO

Jornalista profissional e advogado atuante, tenho sido testemunha presencial dessa marca trágica que, sobretudo entre nós brasileiros, é uma ferida aberta e crônica: a do desprezo acintoso a que estão relegados milhões de compatrícios nossos que disputam, com cães de rua e urubus, restos de comida pelos lixões de todas as cidades, especialmente das que concentram o maior número de excluídos, de todas as idades, doentes e famintos, como os vastos centros urbanos e capitais do Brasil.

Certa vez, madrugada avançada, na redação de um jornal diário de grande cidade industrial do interior do Estado de São Paulo, eu terminava o exame das páginas de abertura e fechamento da edição de segunda-feira, quando um médico amigo e colaborador assíduo do jornal me abordou, na sala privativa, trazendo em mãos mais outro pequeno e bem feito artigo.

De olhos atentos no papel datilografado, li, surpreso, o texto e, maravilhado, gravei, para sempre, o conteúdo e, particularmente, o título que aquele médico, sem religião alguma e declarado agnóstico, havia adotado como título do derradeiro artigo que compunha: “Em busca de pelo menos um cristão”.

Em resumo, ele havia escrito que, no domingo já encerrado, tinha percorrido alguns pontos da cidade, vendo, igrejas e templos cheios de devotos.

Eram católicos e protestantes de seitas diferentes com mesmo nome usual de evangélicas. Cada grupo numeroso situado em seus ambientes particulares e excludentes.

Somariam, todos, vasta multidão heterogênea, divergente em idéias e conceitos, embora com rezas, cânticos, sermões e brados de louvor a um Deus que, na maneira singular de cada partido cultuante, aqueles grupos opostos disputavam entre si, em cacos miúdos, descombinados em tantos pedaços quantas eram as crenças que haviam destroçado o semblante do único Deus da Bíblia, e rivalizavalizando entre si, inimigas e inconciliáveis.

Do lado de fora daqueles templos amplos e confortáveis, em silêncio dramático, contava o doutor, mulheres, caídas ao chão, esqueléticas, maltrapilhas, feias de tanta miséria estampada na cara e na alma, sustentavam, nos braços impotentes, crianças desnutridas, sujas, chorosas e fétidas, enquanto repartiam, sem qualquer divergência de pensamento, a comunhão do infortúnio com homens iguais, trôpegos , quase nus, a vadiagem involuntária dos que só possuem o nada por herança e destino.

E o bom médico, insistia, no seu escrito de analista meticuloso e feroz crítico de uma doença que via sem cura, em perguntar a todos os leitores destinatários, a começar por mim, redator-chefe daquela imprensa cúmplice de todas aqueles contratastes e dores, onde, em que espaço e lugar, em que mundo, enfim, no meio de tanta gente apinhada nos seus templos, cheias de muita religião de boca e vazias de atitudes e de operosa e perseverante bondade, gente apenas devota e orante, enfim, em que mundo real, haveria, ao menos, um só cristão de verdade?

Fiquei sem fala, sem resposta, diante do médico escritor e guardei, até hoje, anos e anos mais tarde, entalada na alma ferida por desarmonias brutais e intoleráveis, a mesma pergunta que venho repassando, com a voz rouca do espírito inconformado, a mesma indagação do nobre e angustiado doutor Leon da Silveira Lobo e que, em vão, tem percorrido o infinito do meu solitário universo pessoal.

Franco Zefirelli, notável produtor e diretor de cinema italiano, tão admirado pelos fãs da sétima arte, no mundo inteiro, trouxe-me, com seu testemunho insuspeito, uma resposta, seguida pela persistência de um desafio que, cheio de ânimo e até de renitente coragem, tem freqüentado as páginas da história deste mundo controvertido que, em desalinho de pensamento e destino, vê surgirem, como quebra da rotina de horrores, homens e mulheres em plácida e afetuosa harmonia de luz, cores e fé, no grau mais alto e desambicioso da entrega desmedida de si mesmos em favor de todos aqueles que somente possuem o patrimônio do nada mais cruel da falta de tudo.

O grande cineasta escreveu, em 1990, breve e tocante depoimento, quando ainda estava viva Agnese Boyaxhiu, jovem albanesa, poetisa, musicista, que deixou tudo, o conforto, carinho e fortuna da casa paterna, foi embora para a Índia e, em Calcutá, tornou-se, por amor a Jesus de Nazaré, a socorrista incondicional, de plantão dia e noite, em favor dos miseráveis absolutos, dos mais desprezados pelo mundo moderno e progressista, poderoso, opulento, tecnocrata e ateu , sobretudo dos moribundos jogados na lixeira das vilas e metrópoles por uma sociedade fingidamente religiosa.

Ela fez do seu corpo franzino e penitente o sacramento vivo e a oração sensível, sem palavras, o cântico celeste de uma liturgia realmente divina que os desafortunados entenderam, passaram a crer e a rezar, vendo dissipar-se, na união construída pela dor mais pungente, todos o preconceitos e até a escuridão do mundo hostil e discriminador.

Agnese, seu nome de batismo e registro civil, tornou-se um monumento da fé católica atual, assumiu o nome de Teresa, veio a ser a respeitada e amada Madre Teresa de Calcutá, morreu em 5 de setembro de 1997, quatro dias depois da morte trágica de Diana Spencer, a ex-princesa de Gales, e tornou-se, no final do século XX, há bem pouco tempo, a mais atual, viva e desafiadora imagem presencial do Divino Jesus de todos os pecadores, deserdados, doentes, famintos, sofredores e sem esperança, – Jesus ! o Deus de toda a Misericórdia – , e passou a ser conhecida como Madre Teresa de Calcutá, num mundo de opulência insultuosa, crimes, guerras e ódios sem fim.

Zefirelli escreveu este o artigo sem título que, na íntegra, transcrevo:

“Não é preciso grande esforço para voltarmos nossos corações e nossos pensamentos a São Francisco de Assis, ao encontrarmos Madre Teresa de Calcutá.

Como o Pobrezinho, essa pequena e frágil mulher é um sublime e desconcertante testemunho de Cristo, que perpetua no mundo o milagre do Amor que Deus oferece ao homem para redimi-lo e salvá-lo.

Madre Teresa faz reviver em nosso tempo aquele grande movimento que explode com Francisco no início do século XII e provoca grandiosa revolução espiritual num mundo confuso e culpado.

Tenho certo conhecimento sobre aquele movimento por tê-lo estudado quando, em 1970, dirigia meu filme “Fraterlo sole, sorella luna” (“Irmão Sol, irmã lua”).

Em certo momento de sua vida, Francisco encontra Deus. Abre-lhe seu coração, deixa-se envolver pelo Amor a ele e ao Universo criado, que, de repente, torna-se uma força arrebatadora e irresistível.

Ao longo dos séculos, o fenômeno repetiu-se com outras figuras de altíssima projeção espiritual, e Madre Teresa renova-o, hoje, entre nós, neste mundo improvável. Mesmo nela, a manifestação do Divino desencadeia uma força irresistível que arrasta multidões.

Todas as Congregações religiosas do nosso tempo estão em crise de vocações; no entanto, aquela fundada por Madre Teresa, as Missionárias da Caridade, está em franca expansão. Todos os dias, jovens de todas as nações, idades e etnias, fascinadas pelo exemplo oferecido por essa mulher, deixam seus lares para segui-la, exatamente como acontecia no tempo do Pobrezinho.

A força de Madre Teresa é o Amor, mas é sobretudo seu modo simples e concreto de vivê-lo e oferecê-lo ao próximo que fascina e conquista.

Ama os pobres, os miseráveis, os moribundos, os encarcerados, os doentes de AIDS, as crianças sem família: ama todos, mas sobretudo aqueles que são "rejeitados" pelo mundo.

Um dia, nos Estados Unidos, tive a sorte de assistir pela televisão um documentário sobre Madre Teresa, produzido pela NBC, que me fez viver uma das emoções mais fortes e desconcertantes de que me recordo.

A equipe da NBC tinha ido a Calcutá para entrevistar Madre Teresa e documentar seu trabalho diário.

O entrevistador e o operador de câmera seguiam-na pela cidade, mesmo quando, como de hábito, ela parava para remexer em imensos focos de imundície.

Madre Teresa sabia que, naqueles locais pútridos, freqüentados por cães vadios, ratos e ladrões à procura de algo para comer, continuamente eram também atirados os "excluídos" da humanidade: criaturas inocentes às quais era negada a dádiva da vida.

E Madre Teresa salvou tantos deles, porque aqueles lugares assustadores eram sua meta habitual e obrigatória.

Ela arregaçava as mangas como faz freqüentemente quando trabalha e punha-se a remexer, com suas pequenas mãos nodosas, aquela imundície nauseante.

O operador de câmera e o entrevistador ao seu lado, incomodados, com máscaras no rosto para resguardarem-se do mau cheiro e dos miasmas.

A força de Madre Teresa é o Amor, mas é sobretudo seu modo simples e concreto de vivê-lo e oferecê-lo ao próximo que fascina e conquista.

Ama os pobres, os miseráveis, os moribundos, os encarcerados, os doentes de AIDS, as crianças sem família: ama todos, mas sobretudo aqueles que são "rejeitados" pelo mundo.

Madre Teresa sabia que, naqueles locais pútridos, freqüentados por cães vadios, ratos e ladrões à procura de algo para comer, continuamente eram também atirados os "excluídos" da humanidade: criaturas inocentes às quais era negada a dádiva da vida. E Madre Teresa salvou tantos deles, porque aqueles lugares assustadores eram sua meta habitual e obrigatória.

De repente, as mãos de Teresa agarraram algo.

Seus olhos iluminaram-se.

Da podridão, ela tirou um pequeno volume: o corpinho recém-nascido, sujo, ensangüentado, com os olhos fechados e o cordão umbilical ainda por cortar.

Com rapidez, porém cuidadosa, lançou-se sobre aquele pequeno ser tentando fazer ressurgir a vida de dentro dele. Sacudia-o, massageava-o com energia.

Chegou a fazer-lhe respiração boca a boca, mas a criança não reagia, parecia mesmo no fim.

– "Talvez fosse melhor deixá-lo morrer", disse o entrevistador.

Madre Teresa lançou-lhe um olhar em chamas:

– "Não", gritou-lhe, "ainda está vivo e tudo que é vivo é o nosso próximo, é Deus".

Com renovada energia, retomou sua tarefa desesperada e, depois de alguns instantes, a criança soltou um gemido.

Ela apertou-a contra o peito, gritando de alegria e a levou para casa.

Estava salvo! Estava vivo!

Depois, tive a felicidade de encontrar pessoalmente essa grande mulher e conheci sua determinação sobre-humana, sua coragem, sua força extraordinária.

Uma mulher que quase não fala, mas age, que arde no desejo de dar tudo de si aos outros.

Ninguém poderia detê-la na sua estrada do Bem.

Para ela não existe burocracia nem obstáculos de qualquer tipo.

Caso se depare com eles, enfrenta-os diretamente, sem incertezas, passa por cima deles, destrói-os e continua irredutível rumo à sua meta, impelida por aquele fogo de amor que tem dentro de seu coração.

Madre Teresa é sem dúvida uma grande santa de nosso tempo.

Mas. é também urna mulher e, como tal, sua estatura moral é gigantesca, impõe-se diante de todos, mesmo dos descrentes, dos ateus ou daqueles que vivem no deserto do espírito e em nada acreditam.

Mesmo a esses, mesmo aos mais infelizes, abre os olhos e o coração.

Não é possível chegar perto dela, vê-la, ouvi-la ou falar-lhe sem dela receber "algo" que, de algum modo, misteriosa e impositivamente, muda nossa vida.

Franco Zeffirelli

Cineasta ”

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