COMO UMA ONDA NO MAR

Passados mais de dez dias, a tragédia do tsunami ocorrido perto da ilha de Sumatra, na Tailândia, que gerou a morte de mais de 150 mil pessoas em toda aquela região do Sudeste Asiático e depredou boa parte dos vilarejos e cidades situados em sua parte costeira, desperta um misto de profunda tristeza e de inusitada decepção, provocada pelo estarrecimento que qualquer desastre natural descarrega na vida das pessoas e pela enxurrada de boas intenções e atuações no local atingido. A tristeza se reflete no olhar dos habitantes que, mesmo naufragados na desesperança e no terror, retiram-se de si uma profunda solidariedade, a pontuar os variados casos relatados pela imprensa internacional: dos taxistas que cobravam de graça para ajudar os estrangeiros a retornarem à vida e ao país de origem aos pescadores que alojavam em seus miseráveis casebres dezenas de pessoas que, de uma hora para outra, se viram abandonadas à própria sorte. Diante das imagens que repetem, dias após dia, os horrores e dramas dos sobreviventes, não há como não sentir dor e compaixão, sentimentos que nos levam a sair um pouco de nosso próprio sofrimento para enxergar as perdas sofridas por aqueles que, tão longe, choram e gemem diante do caos.

Conseqüência inevitável, a ajuda humanitária mundial em peso recaiu sobre aqueles países. Entidades como a Cruz Vermelha e a ONU partiram em socorro das vítimas, tentando pôr ordem na frágil estabilidade social seguinte ao maremoto. A mídia, sensibilizada, explorou à exaustão os resultados da tragédia, suas causas, efeitos, lições e conseqüências, tentando explicar o inexplicável. Países ricos, como a Austrália, o Japão e os EUA anteciparam-se e enviaram vultuosa soma de recursos e grandioso contingente militar para sanar as deficiências e danos causados. Até estrelas alvas de Hollywood e ricaços do esporte, como Sandra Bullock, Leonardo DiCaprio, Steven Spielberg e Michael Schumacher acharam por bem dar parte de suas fortunas em conforto e em auxílio, tudo devidamente documentado pela imprensa. Confeccionou-se, imagine, até um placar de doações, enumerado em ordem crescente de quantias, a fim de mostrar o tamanho da ajuda deste ou daquele país e artista. Fala-se, inclusive, em “caridade competitiva”. Essa é a parte decepcionante da história e reclamar dela faz-nos engolir em seco a ajuda que proporcionam.

Caridade medida, pesada e exposta em público gera em nós essa confusão de valores. O mundo deixa de observar o óbvio, que é a dor dos que sofrem pela tragédia ocorrida, e pára para ver quem dá mais na roleta da benevolência, vitrine de que as celebridades e países se utilizam para se mostrarem ao mundo na sua misericórdia e caridade. Não há como não nos reportarmos à esquecida lição bíblica das mãos que ofertam a ajuda, exposta e desmascarada pelos ensinamentos de Jesus. “Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita. Assim, a tua esmola se fará em segredo; e teu Pai, que vê o escondido, recompensar-te-á” (Mt 6, 3-4). Estes que doaram já tiveram, com certeza, a sua recompensa e já provaram da bonança de serem extremamente ricos e famosos. Doar em caridade o que já lhes foi dado em abundância é sinal de extremo amor àqueles que, diante de uma enxurrada como aquela, não tinham (e não têm) mais nada. No entanto, e essa questão gera reações extremamente delicadas naqueles que acreditam ser o sentido da caridade independente daquilo que a estimula, essa “competição” desnatura a real proporção das coisas e intenções. Gera aquela sensação de autopromoção que é típica das celebridades e que acaba por manchar toda a rede de solidariedade que envolve casos como esse.

Não pretendo julgar a intenção nem os propósitos de quem quer que seja, e acredito que estas doações são, sim, muito bem-vindas e necessárias para estancar a desesperança que fica após este desastre. Entretanto, é necessário que se enxergue a caridade em um sentido mais amplo do que o normalmente divulgado, pois isso se reflete no olhar que nós damos às coisas e às pessoas. Falo daquela caridade que, ao provocar o amor enxergando o outro como complemento de si mesmo, promove em nós o crescimento na santidade e na intimidade com Deus. Ela nos faz integralmente ligados uns aos outros pela malha estreita e fina do amor enviado pelo Pai, fruto da responsabilidade e do chamado à vocação do Eterno.

Dar ajuda não significa, por si só, a prática da caridade. Até porque o homem, na sua vida rodeada de pecados, aprendeu a péssima mania de sujar tudo com a miséria do seu coração, sem se voltar para Aquele que, doando-se, espera nos receber integralmente, num simples e grande jogo de amor. Não tendo aprendido este amor e não o tendo retribuído, o homem acaba por jogar fora a essência do amor fraterno e, nesta medida, fica impossibilitado de repassá-lo aos que necessitam. Fazer com que a mão esquerda não saiba do operado pela mão direita é não deixar que a nossa impureza de coração manche a verdadeira caridade, cuja essência está em Deus e que deve ser buscada Nele. Nesse raciocínio, deve-se evitar o egoísmo e o apego a si mesmo porque impede a prática fecunda do amor. Agindo com o olhar voltado para nós e para nossas fraquezas, deixamos que a própria caridade seja tragada pela onda imensa do mar da nossa miséria e da maldade, tão presente neste mundo.

BRENO GOMES FURTADO ALVES

Formação Jovem / Janeiro de 2005

shbreno@yahoo.com.br

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