Direito a Férias e Lazer

É verão no Hemisfério Sul, o que significa tempo de férias para os brasileiros e para todos os nossos vizinhos latino-americanos. Por isso, é oportuno tecermos algumas considerações sobre o principal conteúdo deste tempo, o lazer.
Todos, sem exceção, aspiram ao descanso. Depois de um ano de trabalho, às vezes mais, sem tirar as devidas férias, há um cansaço físico inegável, que é preciso recuperar. Há o desgaste mental, também. Embora a nossa inteligência, em si, não esteja sujeita a esgotamento, o cérebro se ressente de uma solicitação excessiva, e passamos a não reagir com a prontidão necessária, diante das situações.
Em nossa caminhada espiritual, porém, não há descanso. Pelo contrário, deveríamos aproveitar as férias para preencher de mais espiritualidade esse período extraordinário do lazer.
A primeira citação que conhecemos sobre o repouso está na Bíblia. O Livro das Origens ensina, que Deus fez a grande obra da criação em seis dias, isto é, em seis grandes períodos e, no sétimo dia, descansou, como um coroamento do trabalho realizado (cf. Gn 2,1-3). Isto não significa que Deus precise de repouso. Ele é eterno dinamismo de amor, de sabedoria, de doação, absolutamente perfeito, no qual não há desgaste. Apresentando Deus como exemplo, o autor sagrado quis ressaltar o preceito do dia consagrado ao Senhor, tempo de culto, louvor e agradecimento pelo trabalho semanal. Assim, é prescrito ao homem santificar esse dia, pelo repouso físico, para dar lugar aos valores espirituais, no contacto mais profundo com o Criador, e à dedicação à família e aos amigos.
 Analisando a natureza, do ponto de vista filosófico e ético-antropológico, sabemos que o descanso é uma norma da lei natural. Não se pode obrigar alguém a ser escravo e trabalhar o tempo todo. Isto atenta contra um dos direitos fundamentais do ser humano.
Esta valorização do repouso tem precedentes históricos no Antigo Testamento, que narra a intervenção divina na libertação de Israel, escravo no Egito e sujeito ao trabalho diuturno de fabricação de tijolos e telhas (cf. Ex 12-14). Posteriormente, o relato do exílio na Babilônia também nos leva a pensar numa degradação do trabalho e do próprio ser humano, denunciando o quanto esse povo sofreu, suspirando pela liberdade, pelo repouso e por mais contacto com Deus, o Criador (cf. 2Cr 36,17ss e Sl 137[136]). 
O lazer não se caracteriza por ser um tempo vazio de ocupações; pelo contrário, ele pode ser mais cheio do que o tempo normal, marcado pela rotina dos horários e compromissos habituais. Evidentemente, trata-se de ocupações prazerosas e escolhidas como, por exemplo, visitas a pessoas que não encontramos normalmente: parentes, amigos, benfeitores, pessoas enfermas. Como é bom, no período de férias, rever pessoas importantes em nossa vida: aqueles que gostamos de ouvir, que sabem falar e escutar, e com os quais a troca de experiências é sempre valiosa. É um grande enriquecimento para a pessoa.
Por outro lado, contatos com pessoas e assuntos novos em nosso círculo, também podem significar grande enriquecimento. Quantos profissionais aproveitam as férias para refazer as forças e, ao mesmo tempo, para se atualizarem nos seus respectivos campos de atividade, colocando em dia leituras há muito programadas. Assim, reciclam-se no plano físico e intelectual, para fazer face ao avanço célere da cultura e da tecnologia em nossa época.
Sou plenamente favorável a isto. Durante a quinzena de férias que, normalmente, me permito, reservo três dias para um descanso absoluto. Então, começo alguma leitura, geralmente de cunho filosófico profundo, que possa ampliar minha visão da realidade. O estudo da Bíblia e de novos aspectos da Teologia também deve ser feito.
Deveríamos ter a coragem de aproveitar o tempo livre para uma revisão de vida: reorganizar nosso trabalho e nosso descanso, pois o tempo é uma riqueza irrecuperável, que não pode ser esbanjada à toa. Para isto, é essencial controlar a programação da própria agenda e lançar mão de recursos como, por exemplo, a Internet e a mídia, em geral: quando bem aproveitados podem ser ótimas ferramentas; do contrário, tornam-se terríveis dissipadores de tempo, dinheiro e, até, declínio de princípios morais.
É importante acentuar isto porque, às vezes, as férias se convertem em período de desmando e de oportunidade para a prática de todo tipo de vício. E não é para isso que existe o lazer. Este deve ser um tempo de louvor, de agradecimento a Deus, e também, de distração, tirando-nos da normalidade de nosso trabalho para exercermos atividades mais agradáveis e mais leves, mas sempre na busca de um aperfeiçoamento pessoal e do mundo que nos cerca. Por isso, o lazer é propício à maior prática da caridade, e a tudo o que nos torne pessoas humanas mais íntegras e não apenas limitadas pelo trabalho, ou pelo ócio.
Outra “atividade” que o lazer propicia é o aprofundamento na oração, podendo servir, até mesmo, para um retiro informal, pela prática de mais silêncio e escuta. Saber escutar a voz de Deus, que se manifesta nas maravilhas da natureza: o bramir das ondas contra as rochas, por exemplo, é um calmante inigualável para o nosso espírito e para o nosso corpo. Esta é uma ocasião privilegiada para reexaminar a própria consciência, quanto ao nosso agir em relação a outras pessoas, principalmente aquelas pelas quais somos responsáveis. Para conseguir tudo isso, há que ser pessoas abertas: saber contemplar as paisagens novas que encontrarmos e redescobrir a beleza das paisagens antigas. A vida é constante descoberta da beleza do Criador.
Não há quem não busque a felicidade. E esta é, afinal, a razão de  toda atividade humana. Submetemo-nos a qualquer tipo de canseira, aspirando ao descanso, como recompensa. Só que, muitas vezes, nesta azáfama do trabalho diário, pouco tempo nos sobra para um verdadeiro descanso, o repouso em Deus, pela oração e a união contemplativa, que se tornará plena na eternidade.
Nos cemitérios, sempre me chama a atenção o freqüente uso da palavra “descanso”. “Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno” – é assim que rezamos pelos falecidos. Muito pouco sabemos sobre a vida após a morte, mas uma coisa é certa: o descanso final em Deus não significa um marasmo de inatividade. Pelo contrário, repousaremos em pleno dinamismo de intimidade com Ele, fruindo-O sem cessar e sem esgotamento.
Assim, desejo a todos os que, nesta época, podem se beneficiar de merecidas férias, um descanso que os aperfeiçoe, dignifique e renove,  para que possam retomar suas atividades como verdadeiros cooperadores de Deus na obra da Criação.
 
Cardeal Eusébio Oscar Scheid
Arcebispo do Rio de Janeiro

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

error: Content is protected !!