O FANTASMA DO CARANDIRU

O Brasil mais uma vez está de joelhos diante da opinião pública internacional. A justiça brasileira absolveu o homem que coordenou a invasão que resultou na morte de 111 presos, durante a rebelião do Carandiru em 1992, o Cel. Ubiratan Guimarães. Os 20 desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo anularam a condenação anterior de 632 anos, determinada pelo 2º Tribunal do Júri, em 2001, e inocentaram o coronel Ubiratan por considerar que houve “contradição” entre as respostas dos jurados. Apenas dois desembargadores votaram pela manutenção da pena. Os 20 juízes alegaram dois elementos fundamentais para sua decisão:

O primeiro afirma que a decisão dos magistrados não deve basear-se no clamor popular, na opinião pública – o que é realmente plausível e justo. O segundo afirma que o coronel Ubiratan cumpria ordens. Um absurdo que chega a ofender a lógica. Cumprir ordens não justifica absolutamente nada. Se o coronel simplesmente cumpria ordens, então que fosse condenado imediatamente à mesma pena o governador – e pretenso autor da ordem – na época do massacre, o governador Fleury, mas isso não aconteceu.  Se o mesmo grupo de juízes hipoteticamente compusesse a corte de Nurenberg, que julgou os oficiais nazistas por crimes de guerra, a história da Europa do pós-guerra seria outra, e o nazismo hoje poderia mesmo ser reverenciado, se não exaltado em sua máxima excelência, já que os criminosos nazistas repetiam a mesma cantilena do coronel: “cumprimos ordens”, entretanto os argumentos dos nazistas tiveram seu termo na ponta de uma forca.

A decisão dos magistrados em inocentar o coronel Ubiratan é o reflexo de uma elite social, que secretamente aplaude gestos como o do coronel. Uma elite que além de levantar muralhas aos miseráveis, vê na lógica do porrete o caminho ideal para proteger-se na sociedade que explora, e deplora. Para que não fique parecendo discurso de um esquerdista imberbe – que não sou -, classifico como elite a classe alta e média alta, os grandes empresários, os intelectuais formadores de opinião, os políticos e os meios de comunicação comprometidos com esse grupo. Essa mesma elite crê que na descriminalização do aborto como solução para o controle populacional; crê na esterilização e na distribuição indiscriminada de contraceptivos como solução para diminuição do número de miseráveis; crê num assistencialismo vazio como solução para a tragédia da fome em nosso país. Em suma, uma elite social que até aplaude qualquer iniciativa no sentido de repartir o bolo, desde que sua fatia jamais diminua. E que no caso específico do massacre do Carandiru, crê que bandido bom é bandido morto, e que o referido coronel prestou um grande serviço a toda sociedade.

A decisão dos magistrados paulistas é uma clara licença para matar. Ao não punir culpados pelo massacre de 111 presos, a justiça paulista admite como lícita a violência policial desde que o policial esteja “cumprindo ordens”. O ineditismo da decisão vai além, ao criticar a decisão anterior que condenou o referido coronel a mais de 600 anos de prisão. Não faltou nada para que a vergonha fosse completa, e reforçasse a imagem internacional de nosso país como uma nação que não respeita os direitos humanos. E as principais instituições de defesa dos direitos humanos em todo o mundo já começaram uma mobilização para cobrar da justiça brasileira uma posição moralmente aceitável diante do caso.

Algumas pessoas certamente dirão: “Será que aqueles presos não foram igualmente inclementes com suas vítimas?”. Sim, alguns sem dúvida, entretanto cabe fazer um questionamento e uma reflexão: qual daqueles presos foi condenado à morte? Nenhum. Até porque se houvesse pena capital no Brasil, certamente apenas negros e mestiços pobres seriam condenados. Por sinal, exatamente o mesmo grupo social que foi exterminado no Carandiru. Aqueles homens estavam sob a tutela do estado. E o estado não tem o direito de vida e morte sobre o cidadão. Se admitirmos o contrário, estamos nos submetendo ao risco de sermos vítimas desse mesmo estado. O histórico da tortura nos porões da ditadura brasileira é uma prova disso.
 
Já passou da hora do Brasil decidir qual é o judiciário que deseja ter. Se continuará a ser o atual modelo antiquado, fechado, lento, ineficiente e ineficaz, caro, circunscrito e elitista, distante das massas e da confiança do cidadão, ou o contrário de tudo isso. O brasileiro precisa compreender que o único sustentáculo da democracia é a justiça. Não é a economia, não é a riqueza de um país. É a justiça que mantém coeso o tecido social. A justiça é o grande fiador da liberdade. Podemos então imaginar uma sociedade na qual a justiça recebe o pior índice de confiabilidade por parte de seus cidadãos. Que é o caso do judiciário brasileiro.

Já é hora do Brasil discutir seriamente porque uma mulher pobre que rouba um sabonete fica 18 meses numa prisão, é torturada e perde a visão, enquanto um homem que ordena uma invasão que resulta no massacre covarde de 111 presos desarmados anda livre pelas ruas, é eleito deputado pelo PPB – que vergonhosamente lhe cedeu legenda – a ainda utiliza como destaque no seu número de candidato o 111.  

As Escrituras fazem centenas de referências à justiça como o bem maior do homem. São pelo menos 489 citações ao assunto. A bíblia chega a dizer por várias vezes que o reino dos céus pertence aos justos. Não necessariamente aos homens que conosco compartilham de nossas idéias, que fazem parte de nosso credo, de nossa raça, de nosso grupo social, basta que sejam justos. Chegamos então à conclusão que sem justiça tudo mais perde o valor.

Depois de quase 14 anos do massacre do Carandiru permanecem insepultos os 111 cadáveres daqueles presos. O fantasma daquela tragédia ainda paira sobre nossas cabeças, ainda envergonha o nosso povo que tem clara vocação pela ordem e pela justiça. Ainda enlameia a imagem do nosso país internacionalmente, colocando mais uma vez sobre nossa pátria a pecha de uma republiqueta de terceira categoria, onde a injustiça e o privilégio dos poderosos ainda campeia. É hora de o Brasil decidir qual é a justiça que deseja, se é a da barbárie legalizada, representada no inocentamento dos responsáveis pelo massacre do Carandiru, ou aquela que dignifique e honre a nossa pátria, conforme nos ensina as Escrituras: “Deves procurar unicamente a justiça, para que vivas e possuas dignamente a terra [o país] que te dá o Senhor, teu Deus.” (Deut 16,20).

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