A Quaresma

Estamos a começar a Quaresma, tempo litúrgico destinado a preparar a grande Festa da Ressurreição do Senhor. Teve início, na passada Quarta-feira, dia 1 de Março com a imposição das Cinzas ? e por isso esse dia se chama Quarta-Feira de Cinzas. Aparece ciclicamente após o Carnaval.  

O Carnaval é um tempo de folguedos; em Portugal usa-se vulgarmente o nome de Entrudo, derivado de introitus, entrada. Alguns fazem derivar a palavra Carnaval de Carne vale (adeus carne!) ou de carne levamen (supressão da carne), indo buscar essa expressão a S. Gregório Magno.

Durante muito tempo a prescrição de não comer carne durante alguns dias da Quaresma, feita pela Igreja Católica, foi louvada pelos que reconheciam os malefícios dos excessos no comer e no beber durante o Carnaval. Era necessária uma renúncia: abstinência de carne e diminuição da quantidade de alimento (jejum).

Falar de «renúncia nos nossos dias, eivados de materialismo e voltados só para a procura do bem-estar, pode levar à troça, ao sorriso incrédulo ou à pergunta maliciosa: «ainda há quem se atenha a essas velharias caducas?» Pois bem, esses mesmos são capazes de muito maiores sacrifícios se se trata de manter a linha ou para obter marcas estabelecidas para a prática de qualquer modalidade desportiva.

Se as renúncias quaresmais têm o seu valor, elas não são o essencial para a preparação da Páscoa. A Constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia recomenda: ?Ponham-se em maior realce, tanto na Liturgia como na catequese litúrgica, os dois aspectos característicos do tempo quaresmal, que pretende, sobretudo, através da recordação ou preparação do Baptismo e pela Penitência, preparar os fiéis, que devem ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e dar-se à oração com mais insistência, para a celebração do mistério pascal? (SC nº 109). A Quaresma, é pois um tempo forte de chamamento à conversão interior, a uma mudança radical de vida. E nós católicos e de modo especial nós portugueses não esqueçamos ?o apelo à conversão?, que Nossa Senhora nos veio fazer, quando das Aparições na Cova da Iria. Esse apelo é o mesmo que a Igreja renova constantemente.

Se formos muito superficiais podemos pensar que a Quaresma é um tempo de tristeza e acabrunhamento. A cor roxa dos paramentos litúrgicos, a ausência de flores nos altares, a supressão da palavra aleluia nas celebrações, a indicação de só usar instrumentos musicais para sustentar o canto, sendo este mesmo impregnado do mesmo sentido de luto, pode induzir-nos nesse erro. De facto não é assim. A alegria tem uma origem espiritual e mora no coração daqueles que amam a Deus e se sentem por Ele amados. ?Alegrai-vos sempre no Senhor; repito: alegrai-vos?(Fil. 4, 4). Esta alegria é equivalente à felicidade e ao gozo interior e que normalmente se manifesta no exterior.

A alegria é compatível com a dor. Uma pessoa permanecia na cama impossibilitada de se bastar a si mesma o que a deixava triste e acabrunhada, pensando que só dava trabalho e não servia para nada. Uma visita disse-lhe um dia: ?Ofereça a Deus os seus sofrimentos pela salvação de tantos que não O amam?. O rosto da doente iluminou-se: ?Quer dizer que eu, aqui nesta cama, ainda posso ser útil?? Isso mesmo ? foi a resposta. E aquele rosto apagado e cansado pelo sofrimento físico e moral iluminou-se, enquanto ia repetindo baixinho: ?ainda posso ser útil; ainda posso ser útil…?.

Há portanto na Quaresma um ponto essencial a reter ? é tempo de conversão interior, um tempo de pensar menos em si mesmo e pensar mais nos outros. Quantos que nos atendem num estabelecimento ficam mais felizes só porque pedimos as coisas ?por favor? e dizemos ?obrigada? no fim. Conta-se que um viajante a uma hora tardia entrou numa estação de serviço e foi tomar qualquer coisa ao bar. Por trás do balcão um rapaz novo arrumava as coisas e varria o chão com ar cansado. O viajante pediu-lhe o que desejava e acrescentou: ?O trabalho é pesado, não??. O rapaz sorriu com esforço e continuou na sua tarefa. Passados alguns dias o viajante voltou a passar pela mesma estação de serviço; quando o viu o rapaz do balcão brindou-o com um largo sorriso de acolhimento. E porquê? Talvez porque esse cliente fora o único que teve para com ele uma palavra de interesse; procurou dar um pouco de felicidade e conseguiu com umas breves palavras, que custaram pouco, mas valeram muito para o empregado habituado a que ninguém olhasse para ele com delicadeza e atenção.

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