A indignação inútil

O bárbaro assassinato do garoto João Hélio consternou todo o Brasil. Recolocou na pauta de discussões do país o verdadeiro caos na segurança pública, falência de princípios humanos e a total incompetência e insensibilidade do estado na gestão da segurança como prioridade. Mas talvez toda essa comoção seja mais uma vez inútil caso termine em passeatas silenciosas ou palanques para aproveitadores.

 
Após a notícia do bárbaro assassinato do garoto João Hélio Fernandes, arrastado até a morte por quatro bairros do Rio de Janeiro, preso pelo pé ao cinto de segurança do banco traseiro do veículo da família, que acabara de ser roubado por assaltantes, o Brasil foi tomado por uma comoção que infelizmente pode ser motivada muito mais pelo ineditismo do crime do que pela violência que o mesmo traduz. Num país onde 130 pessoas em média são assassinadas por dia – das mais diversas formas – não há outra explicação razoável.

Já há muito que nossa sociedade padece da passiva aceitação da violência como parte de seu cotidiano. E salvo fatos como o do garoto João Hélio, pela razão que supra citamos, a verdadeira calamidade de um país praticamente conflagrado passa ao largo das prioridades nacionais. Há de ressaltar que essa passividade revelou-se recentemente em nossas eleições, tendo em vista que as realizações ou projetos viáveis no campo da segurança pública não figuraram como um critério relevante na eleição ou reeleição dos candidatos aos diversos cargos disputados. Se segurança pública fosse uma prioridade real, quase nenhum candidato a reeleição teria sido eleito, e toda a câmara federal e o senado teriam sido renovados.  Essa tônica da irrelevância da segurança pública na agenda do brasileiro conduz os mandatários a identificar o obvio: que além de complexa, cara e de longo prazo para obtenção de resultados, uma política séria de segurança pública não dá votos.

Nem mesmo países em guerra atualmente registram números similares aos brasileiros na seara da violência urbana. Fato esse que seria bastante em qualquer nação suficientemente racional a uma profunda reforma social em todos os setores, tendo em vista que nosso senso de civilização está a diluir-se em meio à barbárie, em meio ao sentimento do salve-se quem “mais tiver”. Sentimento esse que é o mesmo que serve de combustível à corrupção, e à falência da justiça e da ordem como valores essenciais a um país que postula um lugar no mundo, dito, civilizado. É hora de todo brasileiro acordar para a dura realidade de que vivemos numa sociedade doente, mas que ainda pode ser curada.

Desta vez, entretanto, a discussão do assunto vê-se permeada de temas relevantes sob o ponto de vista moral. O próprio presidente Lula, em discurso, ressaltou a necessidade de rediscutir a séria crise nos valores humanos em nossa sociedade, o que é meritório. Entretanto seu discurso seria mais útil se viesse acompanhado da implementação do Plano Nacional de Segurança Pública – promessa de seu primeiro mandato jamais cumprida. Intelectuais e produtos da mídia tem discutido a questão da falência da família nuclear como uma das causas da crise moral de nossos jovens. Outros atribuem à falência na educação as causas do recrudescimento da violência. Enfim, todas as razões alencadas juntas, somadas à ineficácia da justiça e ausência do estado resultam na situação de sítio à qual o cidadão honesto se vê submetido.

Como qualquer discussão de um tema polêmico, a que está em tela também se vê eivada de anomalias. Propostas de redução na idade penal, pena de morte, emancipação do menor em função do crime cometido, mais uma saraivada de leis sem apelo prático e etc., são inúteis, tendo em vista que nenhuma delas ataca a gênese ou as gêneses do problema da violência. Da mesma forma é inócuo o discurso da esperada sociedade igualitária, onde é preciso resolver primeiro o problema da injustiça social para que o da segurança seja resolvido por tabela. Segurança pública se combate com ações políticas, como qualquer assunto de estado, afinal vivemos uma sociedade de direito.

 
O problema da segurança pública resolve-se como prioridade de governo, com ações políticas, legais e administrativas. Resolve-se com o fim da separação entre polícias, com capacitação policial, melhoria salarial para policiais, com inteligência investigativa, com políticas para o menor infrator que sejam proativas; com a aceitação do fato de que o criminoso mereçe todo respeito enquanto ser humano, mas que a garantia de segurança dos cidadadãos honestos e produtivos suplanta os direitos dos bandidos por definição. O problema resolve-se também com uma legislação prisional eficaz, com privatização de parte do sistema prisional, com o estabelecimento do regime disciplinar diferenciado de vez, tendo em vista que hoje vemos psicopatas endinheirados  comprando a morte de adversários mesmo fora dos muros das prisões. E para não esquecer: com uma justiça criminal que funcione. Enfim, com tudo aquilo que o governo já sabe que serve como solução, mas que não implementa dado ao fato de simplesmente não ser uma prioridade real. Todas as esferas do governo e do judiciário sabem muito bem que a atual comoção nacional irá passar, como em todas as outras vezes, e aposta nessa acomodação. Apenas ações dos cidadãos, das organizações sociais sérias e da Igreja podem fazer a diferença.

A história é o pano de fundo da ação divina, e sempre nos oferece oportunidades de operar mudanças na sociedade. E a classe política, conforme todos sabemos, é sensível a pressões sociais. Isso não é uma ilusão, é um fato. Nossa classe política é sensível às mesmas pressões que recentemente derrubaram ministros, parlamentares, e puseram em cheque a legitimidade do primeiro mandatário da nação. A sociedade brasileira, caso queira, caso materialize sua revolta com cidadania, é capaz de fazer a diferença, e isso nossa sociedade desconhece. É a nossa capacidade de converter indignação em ações concretas que fazem a diferença, e nesse aspecto, todas as agremiações da sociedade civil têm um papel preponderante, principalmente a Igreja, que pode (e deve) exercer seu grande poder de pressão e abraçar de uma vez por todas essa causa. E a Igreja, conforme pesquisa da OAB, é a instituição que possui a maior confiança dos brasileiros. A Igreja, portanto possui a legitimidade moral para abraçar essa causa, e por que não o faz? Não seria esse o estopim para operar tantas outras transformações que nosso povo tanto almeja?

Entretanto toda a indignação atual pode ser inútil caso a mesma resulte em fatos midiáticos vazio, em caminhadas no calçadão de Copacabana, em camisetas que logo ocuparão as gavetas, em discursos inflamados de políticos que desejam apenas capitalizar sobre o fato. A hora é de cobrar ações concretas, de pressionar os governos e o parlamento para que exerçam o seu papel de defensores e representantes dos interesses da sociedade civil. As soluções técnicas já são conhecidas, basta cobrá-las, basta torna-las prioritárias. E a vigilância dessas ações é vital, caso contrário cairão no esquecimento, é disso que a banda podre de nossa classe política se alimenta: da capacidade quase patológica do brasileiro de esquecer.

A hora sempre será agora. A não ser que estejamos dispostos a aguardar a próxima vítima, que poderá ser eu, você, meus filhos, seus filhos. Vale a pena esperar?

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