A defesa do nascituro não é uma questão religiosa, mas sim de direitos humanos

«A defesa do nascituro não é uma questão religiosa, mas sim de direitos humanos»

Segundo Cláudia Löw, jurista brasileira

O texto trata dos aspectos jurídicos da legalização do aborto no Brasil.

 

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O Editorial da Folha de São Paulo do dia 31 de julho (2005) passado abordou questão que não é nova, mas que vem ensejando acirrados debates nos diversos setores da sociedade. Mais precisamente, tratou da elaboração, por uma comissão tripartite, da elaboração de um anteprojeto

de lei que visa ampliar o rol de excludentes de criminalidade já existentes no Código Penal Brasileiro acerca do aborto. Em outras palavras, objetiva descriminalizar o aborto realizado até a 12ª semana de gestação e ainda aumentar o prazo para a interrupção da gravidez nos dois casos permitidos por lei (estupro e risco de vida para a gestante).

Tal intento encontra, porém, óbices de ordem constitucional e legal, como se verá a seguir:

O Código Penal Brasileiro não faz distinção entre o óvulo fecundado, o embrião ou o feto: interrompida a gravidez antes do termo normal, há o crime de aborto.

 

Também o novo Código Civil, em seu art. 2º, estabelece que a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida, mas a lei põe à salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. É claro que o feto não tem os mesmos direitos do já nascido. O menor também não

tem, com relação ao maior de idade; mas daí a negar-lhe o direito à vida é outra questão.

No plano Constitucional, o art. 5º, "caput" garante a inviolabilidade do direito à vida, que é o mais fundamental de todos por ser a conditio sine qua non para o exercício dos demais direitos. No dizer de José Afonso da Silva "É a fonte primária de todos os outros direitos" (in Curso de Direito Constitucional Positivo, Ed. Malheiros, 19ª ed.). Para a Constituição Federal Brasileira, o conceito de dignidade humana vai além da idéia de integridade física, psíquica e moral do ser humano; ela é considerada como "fundamento da República".

 

Ainda, o Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, o qual assegura, em seu art. 4º, o direito à vida desde o momento da concepção.

 

Como é de ver, o nascituro, que já possui capacidade jurídica, é também revestido da dignidade humana, com a proteção do sistema jurídico constitucional e legal que lhe assegura os mesmos direitos fundamentais da mãe. Dentro de uma linguagem jurídica se pode dizer que a concepção é o suporte fático para o fato jurídico que se seguirá, qual seja, a aquisição da personalidade jurídica através do nascimento com vida.

 

Nelson Hungria escreve: "Na época atual generalizou-se entre os povos civilizados, a incriminação do aborto provocado, seja qual for a fase de gestação, não tendo passado de efêmera e deplorável experiência, em alguns países, a legislação permissiva de tal prática" (comentários ao Código Penal, ed. Forense, 2ª ed. vol V, pág. 262).

 

A defesa do nascituro não é uma questão religiosa, mas sim de direitos humanos. A afirmação de que a vida começa na concepção não é dogma religioso, é algo que a esmagadora maioria dos manuais de embriologia e genética dão como questão indiscutível.

 

Citado pelo Ministro Néri da Silveira, no Parecer lançado na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, proposta perante o Supremo Tribunal Federal, Diego León Rábago, in "La Bioética para el Derecho", explica demonstrar a genética suficientemente que, desde o momento em que surge à vida o zigoto, já há um ser humano, iniciando-se o processo contínuo do desenvolvimento, convertendo-se o zigoto em preembrião, em embrião, em feto, em criança, em jovem, em adulto e em velho, existindo uma identidade absoluta entre todas as etapas, pois trata-se do mesmo ser que passa por diversos estágios do desenvolvimento. Também Keith L.

Moore, define o zigoto como a célula resultante da fecundação de um óvulo pelo espermatozóide e acrescenta que um zigoto é "o começo de um novo ser humano". Ainda, a geneticista Eliane S. Azevêdo, in A bioética no século XX" refere que existe identidade genética absoluta em todas as

células somáticas do organismo humano e entre estas e a célula somática inicial, o zigoto. Acrescenta que, não obstante o grande número de multiplicação celular experimentado por nosso organismo desde o estágio unicelular pós-fertilização, até a morte por extrema idade, o DNA de

todas as células permanece o mesmo. Conclui-se, portanto, que a vida é algo dinâmico que se transforma incessantemente sem, contudo, perder sua identidade.

 

Em 1940, quando editado o Código Penal Brasileiro, não havia o conhecimento de embriologia que existe hoje. Por isso, para acompanhar o progresso, os casos de legalização do aborto deveriam ser restringidos, e não ampliados.

 

Existem os que sustentam que somente passaria a existir vida no ventre materno no momento em que o cérebro do feto começasse a emitir ondas cerebrais; esta linha de argumentação parte do pressuposto de que a vida termina quando se encerra a atividade elétrica cerebral. Tal raciocínio

não se sustenta, pois o embrião possui capacidade e auto-suficiência para fazer iniciar, em dado momento, a atividade cerebral, o que é impossível em um organismo sem vida, posto que não pode tornar a viver por suas próprias forças.

 

Vale ressaltar que a Moral, ao contrário do que muitos pensam, não foi inventada pelo cristianismo. Existe uma percepção comum sobre os princípios fundamentais, que coincide mesmo nas culturas mais distantes… é uma idéia quase instintiva do que é o bem para o ser

humano. Assim, há que se ter cautela antes de se falar, como no Editorial em questão, em "defasadas disposições do Código Penal", pois o que varia com o tempo são o contexto onde se aplicam os princípios e a sensibilidade coletiva frente a alguns valores, os quais nunca desaparecem de todo. Hoje, por exemplo, já não se considera como um delito a sedução, mas a pedofilia continua sendo um crime; os tempos mudaram, mas o princípio é o mesmo: aproveitar-se da inocência do mais fraco.

 

Outra questão importante a ser considerada é o fato de que a maioria das mulheres aborta porque estão sendo forçadas a isso pelos homens. Legalizar o aborto é legitimar uma das piores formas de opressão da mulher. Não é por acaso que as primeiras feministas eram contra o aborto! Ainda, está comprovado que o aborto provocado, mesmo feito em clínicas especializadas, faz crescer a taxa de infertilidade e outras complicações na mulher, como por exemplo, a "síndrome pós-aborto" que onera o sistema de saúde com a necessidade de tratamentos psicológicos.

 

Por oportuno, finalizo citando trecho do mencionado Parecer, cujo tema versa sobre aborto de anencefálico, onde o Ministro Néri da Silveira, ao concluir, refere, com singular propriedade, o seguinte:"…. Revestida a gestante do valor constitucional que se confere à maternidade, cumpre vê-la mais respeitada e admirada por seus concidadãos, porque soube amar até o fim e é somente pelo amor que se constrói e o ser humano pode realizar sua perfeição e felicidade, e nunca pelos simples sentimentos de prazer, bem estar, comodismo ou indiferença à vida dos outros, a começar pela dos mais próximos a nós, que são os filhos. A maternidade, como valor também protegido constitucionalmente, enobrece a gestante; não a priva da liberdade, nem da invocada "autonomia da vontade", ambas exercitáveis sempre com respeito ao direito e dignidade dos demais, como é próprio da ordem democrática e do regime das liberdades."

 

Dra. Cláudia Löw

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