O “Mistério” do Opus Dei (4)

                    Estive pensando na palavra “bastidores”, usada por Jean Lauand e seus companheiros no título de seu livro, para caracterizar sua intenção de revelar coisas normalmente ocultas, acessíveis apenas a um grupo restrito de pessoas.
                Um anúncio desse tipo costuma ser eficaz para despertar a curiosidade. Aquilo que fica “escondido” sempre parece mais excitante, porque traz o apelo do desconhecido, do segredo, do mistério.
                  Seria bom que nos lembrássemos, contudo, de que algumas coisas permanecem escondidas porque assim deve ser. Não há uma intenção egoísta de excluir ou enganar alguém, mas a intenção é, ao contrário, favorecer as pessoas. Se, numa representação teatral, não houvesse os bastidores para ocultar do público as trocas de roupas, a montagem de cenários e demais preparativos, o espetáculo não teria o brilho, o resultado esperado. Os espectadores vão ao teatro desejando ver a representação, a cena, e não os “bastidores”. Quanto mais invisível ficar a técnica por trás dos efeitos, melhor será a qualidade do resultado… E se, no meio da apresentação, alguém chegasse de repente e retirasse os bastidores, cortinas e coxias, será que essa pessoa seria aclamada como benfeitora? Os espectadores pagaram seu ingresso para ver a cena, e não o que está por trás dela…
            Sabemos, é claro, que a fé não é ficção, nem fantasia. Queremos apenas salientar que nem sempre o ato de ocultar alguma coisa é sinal de más intenções, mentira ou fuga, mas pode também ser algo benéfico, correto, adequado.
            Confesso que eu não sabia que a mortificação corporal continua sendo praticada hoje, não só pelos membros do Opus Dei, mas também nos conventos, assim como por muitos sacerdotes e leigos que, de bom grado, aceitaram o convite de Jesus a segui-lo no caminho da cruz, colaborando com ele na obra de salvação do mundo.
            Mas, se as boas irmãzinhas em seus conventos, ou os leigos do Opus Dei decidem “completar em seu corpo o que faltou à paixão de Cristo, em favor da Igreja” (Col 1,24), será que devemos censurá-los por não saírem por aí, apregoando nas esquinas e publicando nos jornais os seus atos de mortificação? Se o fizessem, “já teriam recebido a sua recompensa” (Mt 6,2.5.16), pois estariam buscando a própria glória. Jesus, porém, recomenda que não busquemos os louvores do mundo por nossas boas obras: “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita” (Mt 6,3), pois a recompensa que esperamos é de outro tipo. Esse é, também, o motivo pelo qual o Opus Dei não se tem preocupado em responder à altura às acusações que lhe são feitas: seu objetivo não é “agradar ao mundo”, mas a Deus (Gl 1,10). Jesus também não fez questão de justificar-se diante de seus acusadores, porque não estava interessado em salvar sua vida, mas queria, justamente, entregá-la…
            Se há “bastidores” no Opus Dei, portanto, isso não é feito para enganar ninguém, mas simplesmente por humildade e também por caridade, para evitar que os mais fracos se deixem desanimar por não serem capazes de imitar o exemplo dos mais fortes. E a revelação sensacionalista de tais “segredos” é, no mínimo, uma indiscrição e uma indelicadeza.
            A bem da verdade, é preciso esclarecer: a mortificação corporal praticada hoje é muito mais leve do que a que se praticava na antiguidade e na Idade Média. A  Igreja evoluiu em sua compreensão a esse respeito, e prefere hoje colocar a ênfase nas disposições do coração, mais do que nos atos externos. Há um certo apelo sensacionalista na forma como os autores de “Opus Dei – os bastidores” mencionam o cilício, por exemplo, como “uma coleira com pontas de ferro que penetram na carne”. Tal descrição transmite uma idéia totalmente falsa para quem nunca viu um cilício.
Tive a oportunidade de examinar um: trata-se de uma faixa com cerca de 5 cm de largura, formada por pequenos elos de metal entrelaçados. Em alguns desses elos, a pequenos intervalos, encontram-se pendurados (como pingentes numa pulseira) pedacinhos curvos do mesmo metal, como se fossem metades desses elos, cortados no sentido vertical. Os “pingentinhos” são móveis, não fixos, e suas pontas não são afiadas, nem têm como “penetrar” na carne, por serem curvas. Podem, no máximo, causar algum desconforto, e seus usuários garantem que nunca chega a romper ou mesmo marcar a pele, nem o cilício, nem a disciplina (espécie de chicotinho leve, feito de barbante). Certa mulher que os experimentou declarou que “é muito mais dura uma sessão de cabeleireiro do que usar uma hora o cilício; e eu trocaria o incômodo de um minuto com o aparelho corretor dos dentes por dois minutos de disciplinas”.
                Trata-se, portanto, de uma penitência pouco mais do que simbólica, cujo maior valor está em ser sinal, expressão externa da verdadeira penitência, que é a contrição do coração e a decisão de fortalecer e disciplinar a vontade, para que esta prevaleça sobre o instinto e as tentações.
Essas não são as únicas formas possíveis de penitência. Há quem dê preferência a outras formas de mortificação igualmente fundamentadas na Bíblia e consagradas pela Igreja, tais como o jejum e a esmola, sem esquecer a oração. Em todas essas modalidades, porém, a tendência atual é pedir (e dar) cada vez menos, e por isso vai-se perdendo, na Igreja, o sentido da renúncia e do sacrifício. Uma “penitência” que não custe nada, que não exija esforço, já não é penitência… E o fato é que sem penitência, sem disciplina, não se fortalece o caráter, nem a fé.
                São evidentes os efeitos desse “relaxamento”. Todos lamentam a falta de seriedade e de profundidade na vivência cristã dos católicos de hoje. O Cardeal Danneels, da Bélgica, comentava recentemente o problema da falta de vocações sacerdotais, discutido no Sínodo dos Bispos: “Para mim, a solução está no aprofundamento da fé. Ter um sentido de radicalidade evangélica mais forte: deixar tudo para seguir a Cristo…”. Pouco após o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI exortava: “É urgente recordar aos homens o significado e a importância do preceito divino da penitência…” E, devido à recente beatificação do Pe. Charles de Foucauld, muito se tem enaltecido a radicalidade da entrega a Deus vivida por esse irmão. “Radicalidade” que falta à maioria de nós, mas que, no fundo, todos sabem ser necessária e benéfica ao mundo… porque a verdadeira forma de amar o próximo é dar a vida por ele, e não há entrega sem sacrifício, sem renúncia aos próprios interesses.
            Quando se perde de vista a dimensão do sacrifício (que é a da cruz), formam-se noções equivocadas sobre o sentido do Amor, e muitos chegam a pensar que amar é satisfazer aos caprichos e ceder às fraquezas, nossas e dos irmãos… com base no falso pressuposto de que “fazer o que queremos” nos tornará felizes. A realidade atual está aí para desmentir isso… E é certo que ninguém aprende a “renunciar a si mesmo” a não ser por meio da penitência, seja qual for a forma escolhida para praticá-la.
Certamente, o caminho proposto pelo Opus Dei não é para todos, nem é o único caminho possível para a santidade. Tampouco se afirma que são as “práticas” que salvam, nem que não possa haver, dentro da Obra, pessoas mais pecadoras do que outras fora dela. Muitos certamente chegarão ao céu sem nunca ter usado um cilício, nem praticado as virtudes em grau heróico. Mas uma coisa é certa: para que essa maioria de pessoas “comuns” possa também salvar-se, é preciso que haja, entre elas, alguns santos, heróis e mártires da fé, que, a exemplo de Cristo, aceitam subir à cruz em lugar dos outros, renunciando a si mesmos por amor a Deus e aos irmãos. Para fazer frente à radicalidade com que o mundo mergulha no pecado, impõe-se uma igual radicalidade na virtude…
            Uma pequena porção de sal confere sabor a uma grande quantidade de alimento, e uma pequena luz ilumina o caminho de muitos. Nem todos precisam ser sal e luz, mas é preciso que alguns o sejam… para que muitos sejam salgados e iluminados.
            Essa é a vocação que o Opus Dei procura despertar em seus membros. Não somos obrigados a imitá-los, mas, antes de criticar, seria bom pensar se não lhes devemos, ao contrário, gratidão, por assumirem sobre si as conseqüências de nossas misérias, e conquistarem para nós um lugar no céu…
                                                                                                             Margarida Hulshof
                                                                                                              (dezembro/2005)

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